A dança das pétalas

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O passado fica lá atrás, dizem-me alguns, mas eu não penso assim.

Importa só o presente, dizem-me alguns, mas eu não penso assim.

Mesmo as lembranças que não são inteiramente minhas, de algum modo, pertencem-me e surgem-me nos pensamentos recorrentemente.

Os sentidos apuram-se quando vejo fotografias antigas, quando ouço vozes apagadas da vida, quando sinto lugares há muito tempo deixados para trás, vazios.

Fecho os olhos e vejo tudo e sinto tudo, como se o passado se revelasse e se tornasse, para mim, afinal, o presente.

É normal este sentimento em pessoas que estudam o passado. As pesquisas são constantes, há sempre mais para se saber, há sempre mais para se descodificar. Os sentimentos, tornam-se mais fortes quando uma significativa parte dessas pesquisas, incidem sobre a terra de origem, sobre as raízes.

Em conversa com uma antiga zeladora da igreja, a senhora já na casa dos oitenta anos, contou-me que aquando da Festa do Nosso Senhor dos Milagres, as mulheres corriam as freguesias mais próximas como Beiriz e Amorim em busca de flores.

Imagino essas mesmas mulheres, autênticos jardins andantes a baterem às portas, na incessante procura de mais e mais flores.

No teto da minha igreja, existiam uns pequenos orifícios, por onde as pétalas eram libertadas, tal chuva.

As pessoas dentro da igreja com a sua fé inabalável, deixavam-se acompanhar pelo bailado dessas pétalas rosa, brancas, amarelas, entre outras. As pétalas caíam sobre cabelos, deslizavam pelas cabeças, tocavam os rostos até desmaiarem no chão.

O povo em silêncio, deixava-se inebriar por este momento e em sinal de respeito, não as calcavam, em vez disso, respeitavam-nas e olhavam as pétalas como uma bênção divina.

Já não há orifícios no teto da minha igreja.

Mas a dança das pétalas acontece.

São mulheres que as guardam em cestas de vime e no momento certo, as pétalas libertas caem sobre cabelos, deslizam pelas cabeças, tocam nos rostos até adormecerem no chão.

Imagino as pescadeiras que sempre acharam as pétalas santificadas e com muito carinho as seguravam e ainda hoje as levam para casa.

No final da cerimónia as pessoas com a sua fé inabalável acreditam levar consigo um bocadinho de céu.

O passado não fica lá atrás, digo eu.

O passado faz parte de nós, faz parte de mim.

O passado, mesmo diferente regressa recorrentemente.

Eu penso assim e logo me lembro:

 

Rico Senhor dos Milagres

Teu caminho pedras tem

Se não fizesses milagres

Não te ia ver ninguém

Cândido Landolt, Folclore Varzino