Outro dia dei começo a remexer no meu baú de recordações e entre mais de dois milhares de fotografias estava uma que me fez recuar perto de sete décadas. E fez trazer à lembrança um episódio bastante curioso.
Comecemos pelo princípio da meada.
Não é segredo nem novidade para quem sabe de quem se trata os protagonistas principais desta história, que entre mim e o Albino Batista de Lima sempre existiu uma forte amizade, desde os tempos da adolescência, como tipógrafos, quando frequentava assiduamente a Tipografia Camões, nas suas precárias instalações na Rua José Malgueira, primeiro num barraco do quintal, depois alargado para um anexo, mais tarde para a cozinha e por fim para o corredor da casa, antes de sair para as amplas instalações na Cova do Coelho. Foi aqui que o Albino se descolou do resto da família para criar a Binográfica, primeiro na Praça João XXIII e depois com instalações próprias na Rua Elias Garcia. Tudo acabou, depois de tantos anos a liderar a arte gráfica!!!.
Sem mais delongas, assinale-se que na Rua José Malgueira (Rua da Senra como era chamada), a família Batista de Lima tinha uns quartos que eram alugados aos banhistas, no Verão, por norma gente ligada à agricultura para os lados do baixo Minho. Uma das famílias habituais era de Sequeira, freguesia de Braga. Era tão grande a amizade criada entre quem se servia das instalações da acanhada casa para veranear e dos seus proprietários, com a Dona Blandina, esposa do historiador João Batista de Lima, ou a Dona Assunção, esposa de seu filho João Batista de Lima Júnior, que não só o recheio comestível era engrossado com produtos da terra, como levou a que um dos veraneantes (o solteirão “tio Albino”) se oferecesse para apadrinhar o batismo de um dos rebentos da casa, neste caso o Albino (Maio Batista de Lima). E mais se estreitaram os laços de amizade ao longo dos tempos, e não só nos “meses de banhos”.
Certo dia, o Bino (como era conhecido), fez-me um convite, aproveitando o facto de me encontrar a recuperar de uma chamada “doença da época”. Tratava-se de o acompanhar a passar uma semana em Sequeira, em casa do seu padrinho, onde era muito querido e sempre bem estimado. Aceitei, até porque ocasiões dessas não se podiam desperdiçar. Isto por volta dos anos 50, éramos ainda muito jovens, o Bino nascido em 37 e eu em 34 dessa década do século passado. E lá fomos de malas aviadas até à freguesia bracarense distante 8 quilómetros da capital do Minho. Era altura das vindimas, por Setembro dentro. Que maravilha de estadia… Comida e bebida à farta e diversão quanto baste nas colheitas do milho ou das uvas.
Até que, no fim-de-semana fomos surpreendidos pela presença de um grupo de amigos do Bino na Capela Marta (e meus de arrasto). Ora convém dizer que quem herdara de seu pai a alcunha de Pescadinha, foi a alma-mãe da Capela Marta. Não fez parte da fundação pelo maestro António Marta (em Março de 1951) mas sim da escritura pública da Associação Cultural Capela Marta, em 9 de Maio de 1986, agora com sete décadas de existência. O Bino além de “solista incontestável pela sua linda voz”, como foi justamente reconhecido, foi também autor da letra do Hino da Capela, feitos que lhe valeram o reconhecimento ao ser premiado com o título de Presidente Honorário. Uma grave enfermidade que o despedaçou aos bocados, tirou-o do nosso convívio em 2021, com 84 anos de idade.
Recordemos a sua memória, mas vamos ao resto do fio à meada da história.
Desse grupo de amigos, fazia parte Alberto Marta (filho do Mestre Antoninho) e o sr. João Pescadinha, pai do Bino, que nos surpreendeu com um “carregamento” de caras de bacalhau, já devidamente demolhadas para serem confeccionadas à noite numa das grandes panelas próprias de casa de lavoura minhota. Para engrossar o número de convivas apareceu, acedendo a convite feito, o Padre Mário César Marques (irmão do saudoso juiz conselheiro António César Marques), pároco da freguesia vizinha de São Julião dos Passos. Depois foi sentar à volta de uma grande mesa, própria da região, e entre visitantes e gente da casa foi um fartote a comer e beber. No final, já altas horas da noite, bastante “comidos e melhor bebidos”, e dado que estava reunida gente ligada à cantoria, fora exigido que cada comensal cantasse uma cantiga à sua vontade, o que serviu para o Bino mostrar, mais uma vez, a sua voz bastante timbrosa que podia até acordar quem estivesse a dormir na vizinhança… que não havia, felizmente. Já com a meia-noite à porta, chegou a hora da debandada, até porque o Padre Mário tinha de celebrar, na sua paróquia, a chamada “Missa Primeira” por volta das 6 da manhã, como era costume nas aldeias.
Para passar a noite cada um que se arranjasse da melhor maneira, com camas a albergar 3 e 4 pseudo-dorminhocos que praticamente nem oportunidade tiveram para dormir, quantos deles apoquentados com desarranjos intestinais causados pela mistura de vinho novo, uvas, figos e marmelada. Até que surge o sr. João dando ordens para levantar, qual toque de alvorada como nos quartéis, porque era necessário assistir à missa celebrada pelo Padre Mário e havia para palmilhar cerca de dois quilómetros. Cada um vestiu o que tinha mais à mão, e depois de engolir qualquer coisa que servisse de pequeno almoço, ala que se faz tarde! O grupo, após um percurso por caminhos de aldeia, lá chegou à igreja, estava a missa a começar. Após autorização de pessoas de confiança da “casa”, em surdina fomos subindo as escadas para o coro que, como é tradição dos templos, fica situado no alto da entrada. Ora naquele tempo as missas usavam o rito tridentino, celebradas com o padre virado para o altar-mor e de costas para os fiéis, ritual que foi alterado em meados dos anos 60, do século passado, com as novas orientações d0 Concílio Vaticano II.
A dada altura, a mando do Bino, os elementos que faziam parte da Capela Marta começaram a entoar cânticos do reportório, o que surpreendeu quem da parte de baixo assistia à missa, com a curiosidade a obrigá-los a esticar o pescoço para cima, e também ao Padre Mário que na altura de se virar para os fieis, abrindo os braços para os saudar em latim (orate fratres, o mesmo que dizer em português orai irmãos), lançou os olhares para o alto do coro, abanando a cabeça como que a dizer “não tendes juízo”. E lá prosseguiu todo o cerimonial religioso, não sem antes o sr. João Pescadinha puxar por mim para junto da grade do coro, em lugar de destaque entre ele e seu filho, aconselhando que também fizesse parte da cantoria. À minha nega de que não percebia patavina a esse respeito, aconselhou-me que abrisse e fechasse a boca a imitar que cantava mesmo sem soltar qualquer nota do latinório. Tudo correu da melhor maneira. No final, foi uma festa para as pessoas da terra a saudarem os cantores conterrâneos do abade da freguesia. Até que do meio dos “homens de respeito”, saiu uma frase inesperada: “Tudo foi bonito de se ver e ouvir, mas devo salientar aquele senhor que está ali (apontando-me o dedo) que tem uma voz forte e ouve-se à distância”. O engano do senhor deve-se ao facto de me ter colocado junto ao Bino que, esse sim, tinha uma voz forte e bem timbrada. Não adiantou nada esquivar-me aos elogios, mas o Bino procurou logo pôr água na fervura da confusão, aplaudindo os elogios do “senhor de respeito”, para não criar complicações.
Seguiu-se um passeio pelas entranhas montanhosas da freguesia, com o Padre Mário como cicerone, sendo batida uma foto onde faltava o sr. João Pescadinha que serviu de fotógrafo, principal culpada para ilustrar esta história. Depois registou-se a debandada colectiva para a Póvoa, na camioneta da carreira. E foi toda a viagem a serem tecidos comentários… aos comentários no final da missa. Não escapei, no entanto, às críticas de ter sido louvado a cantar, quando nem sequer uma sílaba soltei, até porque não entendia nada daquele latim eclesiástico.
É bem certo o ditado de que por vezes as aparências iludem, como iludiram o “homem de respeito” de São Julião dos Passos.