Vozes da Pesca

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Portugal tem uma relação ancestral com o mar. Nas nossas águas salgadas navegam muito mais do que embarcações: navega a nossa história, a nossa cultura e o nosso sustento. Somos um povo virado para o oceano e, no entanto, tantas vezes viramos as costas a quem dele vive. É com esta consciência que a APROPESCA dá início a esta rubrica mensal.

Queremos que esta seja uma tribuna de verdade e de partilha. Um espaço onde, todos os meses, possamos levantar a voz em defesa da pesca, da nossa comunidade e do nosso peixe.

Vivemos e trabalhamos na maior comunidade piscatória do país. Aqui, o mar é mais do que um horizonte; é um modo de vida. Todos os dias, centenas de homens e mulheres saem para o mar ou para as lotas, enfrentando as marés da natureza e da economia. Ao longo de gerações, construímos um saber profundo, resiliente e comunitário. Um saber que alimenta famílias, abastece mercados e dá sabor à nossa gastronomia.

Somos uma região privilegiada, com um mar generoso que nos oferece um cabaz variado e rico em sabor e valor nutricional. A sardinha, tão celebrada nas festas populares, continua a ser uma das nossas espécies rainha, mas há muito mais: fanecas, carapaus, cavala, pescada, polvo, raia, linguado, azevia, língua, biqueirão, sarda, rodovalho, pregado e robalo são apenas alguns exemplos do que diariamente sai das nossas redes e enriquece as mesas dos portugueses. Espécies de proximidade, de qualidade que merecem ser mais valorizadas — tanto pelo consumidor como pelas políticas públicas.

Esta comunidade, contudo, apesar da sua dimensão e importância, enfrenta desafios profundos e muitas vezes ignorados. Desafios que colocam em risco a sua sustentabilidade económica, social e até cultural.

Por isso, este espaço mensal será também um alerta. Uma chamada de atenção. Porque estamos no terreno, porque conhecemos os problemas de perto, porque vivemos deles. E porque sabemos que só falando deles é que poderemos começar a resolvê-los.

Quando o peixe vale pouco para quem o apanha. Todos reconhecem a qualidade do peixe português. É frequente ouvirmos nutricionistas e consumidores enaltecerem a frescura, o sabor e a diversidade do nosso pescado. No entanto, essa valorização raramente chega a quem o apanha. E aqui reside uma das maiores contradições do setor: o peixe é caro para o consumidor, mas vale pouco para o pescador.

Como se explica que um quilo de peixe seja vendido por vários euros no mercado, mas tenha rendido cêntimos a quem o tirou do mar? Como se justifica que o esforço, o risco e a dedicação de quem anda no mar sejam tão mal pagos? Esta desproporção é injusta, insustentável e revoltante. E é uma das razões que afastam os jovens da pesca e empurram muitas famílias para a precariedade.

Falta mão de obra nacional — e a legislação não ajuda. Num país com uma costa tão extensa e uma tradição tão forte ligada ao mar, é quase irónico termos de falar em falta de mão de obra para a pesca. Mas é a realidade: cada vez menos portugueses se dispõem a trabalhar no setor. As razões são muitas e não se prendem com falta de vocação ou de ligação ao mar. Prendem-se antes com as condições de trabalho, com a instabilidade, com a dureza da vida no mar e com o pouco reconhecimento que se dá a quem por lá anda.

Além disso as leis laborais revelam-se profundamente desadequadas à realidade da pesca. As regras laborais pensadas para o setor fabril ou os escritórios urbanos não fazem sentido no mar. É necessário adaptar a legislação à especificidade da atividade piscatória, garantindo os direitos de quem trabalha sem comprometer a viabilidade económica das embarcações.

A juventude não vê futuro nesta profissão. E, quando vê, não encontra incentivos nem garantias. Muitos preferem emigrar ou procurar alternativas em terra. O resultado? Barcos atracados por falta de tripulação. Patrões que querem trabalhar, mas não conseguem formar tripulações completas. E um setor que se vê obrigado a recorrer à contratação de trabalhadores estrangeiros, muitas vezes em contextos de grande precariedade.

Este é um tema sensível, que merece ser discutido com seriedade. Precisamos de mão de obra. Precisamos de valorizar quem vem de fora ajudar-nos a manter viva a nossa atividade. Mas também precisamos de garantir que essas pessoas são tratadas com dignidade, que as suas competências são reconhecidas de forma célere e justa e que não são exploradas por um sistema que, tantas vezes, ignora as particularidades da pesca.

A integração dos trabalhadores estrangeiros no setor não é apenas uma questão de mão de obra. É uma questão de justiça social e de visão estratégica. Muitos destes homens chegam com experiência de pesca nos seus países de origem, mas em Portugal veem-se confrontados com burocracias intermináveis e um processo de reconhecimento de competências que pouco tem de objetivo ou eficaz.

É urgente criar mecanismos céleres, justos e transparentes que permitam a equiparação das competências adquiridas no estrangeiro. Não faz sentido que um trabalhador com anos de mar tenha de recomeçar do zero. Esta barreira administrativa agrava a falta de pessoal e dificulta a dignificação do trabalho marítimo. Mais uma vez, a Lei parece feita por quem nunca pisou o convés de uma embarcação.

O desassoreamento da barra: um perigo constante. Há ainda problemas que não se veem de imediato, mas que ameaçam a nossa atividade de forma muito concreta. O desassoreamento da barra do nosso porto de pesca é um desses casos.

É uma questão que se arrasta há demasiado tempo e que põe em causa a segurança dos pescadores e das embarcações. A acumulação de sedimentos e areia na entrada da barra compromete a segurança da navegação e entrar ou sair do porto tornou-se, para muitos, um exercício de risco. E quando o risco ultrapassa o aceitável, os barcos ficam em terra ou não entram.

As dragagens são prometidas, mas tardam. As intervenções são feitas, mas insuficientes. E nós continuamos a ver o assoreamento avançar, enquanto nos pedem paciência e compreensão.

Queremos dar palco a quem raramente o tem. E queremos, acima de tudo, contribuir para que a pesca tenha o reconhecimento que merece na nossa economia, na nossa cultura e na nossa política.

Mas esta rubrica não será feita só por nós e para nós APROPESCA. Queremos que ela seja feita convosco — pescadores, armadores, comerciantes, consumidores, amantes do mar. Este espaço será tão mais rico quanto mais vozes trouxermos para ele. Por isso, convidamos todos a participar, a sugerir temas, a contar histórias, a levantar questões. Porque não queremos apenas denunciar: queremos contribuir para soluções.

Estamos conscientes de que há muito a fazer. Que há lutas que já duram há décadas. Mas também acreditamos que é com informação, com diálogo e com persistência que se constroem mudanças duradouras. E é por isso que aqui estamos: para falar do mar com verdade, com conhecimento e com paixão.

A pesca não é apenas um setor. É um modo de vida. É um bem público. É um alimento. E é, sobretudo, um espelho da forma como tratamos o nosso território, os nossos recursos e
os nossos trabalhadores. Que esta rubrica seja a nossa voz em terra firme.

APROPESCA – Organização de Produtores da Pesca Artesanal OP