Do mar à multa: o peso excessivo do castigo na pesca

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A atividade marítima em Portugal – e em especial a pesca – encontra-se hoje rodeada de uma abundante e complexa teia legislativa, muito dela resultante da transposição de diretivas e regulamentos comunitários. O setor vive sob normas que abrangem desde a segurança a bordo até à conservação dos recursos, passando pelo licenciamento, rastreabilidade e comercialização. Para quem trabalha diariamente no mar, este labirinto jurídico traduz-se numa dificuldade real de compreensão e aplicação das regras, frequentemente sujeitas a alterações e interpretações diversas.

No centro deste quadro encontra-se o Decreto-Lei n.º 35/2019, que estabelece o regime sancionatório aplicável à atividade da pesca comercial marítima. Este diploma constitui uma peça principal de qualificação das infrações, definindo quais os comportamentos pu- níveis, os valores das coimas e as respetivas graduações. É, em suma, a base legal que enquadra a punição e a disciplina no setor, com implicações diretas e imediatas sobre armadores, mestres e tripulantes.

As recentes propostas de alteração ao Decreto-Lei n.º 35/2019 surgem envoltas em grande expectativa, mas rapidamente se percebe que não respondem às antigas – e legítimas – exigências do setor da pesca. Pelo contrário, arriscam agravar um clima já de si tenso e penaliza- dor. Em vez de trazer soluções equilibradas, as alterações parecem concentrar-se quase exclusivamente no endurecimento das coimas, tanto no seu valor como na sua própria qualificação.

As alterações ao diploma falham também ao não incluírem propostas há muito apresentadas pelos armadores no que respeita às medidas cautelares, em particular a apreensão do pescado ou do produto da sua venda. Ainda que se destinem apenas a infrações consideradas graves (ou flagrante delito), a proposta do novo diploma amplia o leque de situações em que as medidas cautelares podem ser aplicadas, tornando a versão mais severa e mais abrangente.

De louvar é, apesar de tudo, a restrição da apreensão ao lucro obtido com a venda das capturas. A versão em vigor esquece-se que o valor da venda das capturas não corres- ponde ao lucro efetivo do armador, mas sim ao rendimento bruto de onde se retiram todas as despesas com a embarcação, os custos operacionais e, sobretudo, os salários da tripulação.

As coimas têm uma função clara e reconhecida: dissuadir comportamentos ilícitos e sancionar infrações. Contudo, quando nos reduzimos a um sistema punitivo, perde-se um eixo fundamental – o da consciencialização e da educação. Ao privilegiar o carácter castigador, esquece-se que a pesca é um setor complexo, marcado por tradições e por normas técnicas difíceis de interpretar. A experiência demonstra que um setor tão peculiar e exigente como a pesca precisa, acima de tudo, de pedagogia e consciencialização. De pouco serve multiplicar autos de notícia se, no dia seguinte, os mesmos erros voltam a repetir-se por falta de informação, de formação ou de compreensão das regras.

Uma verdadeira política de sustentabilidade das pescas deveria apostar numa maior incidência pedagógica, através de ações de formação contínua a armadores, mestres e tripulantes, com sessões práticas que expliquem a aplicação das normas comunitárias e a razão da sua existência, de campanhas de sensibilização nas comunidades piscatórias, visando transformar a legislação em algo compreensível e aplicável no quotidiano, no uso e implementação de ferramentas digitais simples e acessíveis, que ajudem a esclarecer dúvidas em tempo real, reduzindo a dependência de interpretações dispersas das autoridades.

O problema não está em fiscalizar – isso é necessário e inevitável. O problema está em acreditar que a repetição de coimas cada vez mais pesadas, aplicadas por um excesso de entidades fiscalizadoras (Polícia Marítima, GNR, DGRM, entre outras), produzirá os resultados desejados. Na prática, gera apenas cansaço, desconfiança e até um certo sentimento de perseguição.

Outro aspeto preocupante é a multiplicidade de entidades fiscalizadoras que intervêm na pesca. DGRM, GNR, Polícia Marítima, Autoridade Tributária, entre outras – a lista é extensa e traduz-se, para quem vive do mar, num ambiente de permanente duplicação de esforços e de insegurança jurídica. Não raras vezes, um mesmo armador é alvo de sucessivas abordagens, cada uma com critérios distintos e entendimentos divergentes.

Uma solução equilibrada passaria por uni- ficar a vertente policial da fiscalização numa única entidade especializada, com critérios claros e uniformes, reduzindo a dispersão de competências. Mas, acima de tudo, passaria por recolocar a pedagogia no centro da atuação administrativa, substituindo a lógica de “apanhar e punir” por uma lógica de “for- mar e prevenir”.

Não seria mais sensato adotar um modelo de coordenação unificada, através de uma entidade policial especializada que concentrasse a fiscalização? Uma estrutura que pudesse atuar com eficácia, clareza e proximidade, reduzindo a dispersão de poderes e garantindo critérios uniformes de atuação. Tal solução não elimina- ria a necessidade de outros organismos regula- dores, mas permitiria que a dimensão policial e fiscalizadora tivesse uma face única, mais previsível e, sobretudo, mais justa.