Engano velocipédico – Opinião Luís Leal

0
1267

Que me desculpem os leitores que ainda têm a pachorra de me aturar, mas para preencher este Cantinho, deu-me na veneta pessoalizar um pouco os acontecimentos que servem de base para a sua “construção”. E então lá vai… com licença. Mas para isso tenho de recorrer ao meu baú de recordações, abrindo-o com cuidado, pois tem os fechos bastante enferrujados pelo tempo, principalmente as dobradiças. Ao abrir não encontro documentos escritos que saltaram fora da arca para se alojarem no cérebro, bastante empoeirados.

Vamos lá abrir o livro de memórias, obrigando a recuar mais de meio século para contar estórias da minha vida. Desculpem, mas às vezes torna-se necessário avivar a “cachimónia” para ela não adormecer.

O que aconteceu é que em certo domingo de sol abrasador no pico da missão de espalhar os seus raios, com a passagem da manhã para a tarde, andava muito despreocupado a “dar a volta dos tristes” e “fazer horas” para o almoço caseiro, ao passar pelo então frondoso de gigantescas árvores, Largo das Dores, acompanhado do meu rebento mais velho (que me fez pai pela primeira vez, o que acontece aos primogénitos), entra-me pelos ouvidos o som estridente de sirenes de motos. E como estava situado no “bico” do alto muro que tira os olhares dos passantes ao interior do Colégio do Sagrado Coração de Jesus – no tempo em que Madre Sá era a principal responsável até no comando das coisas boas que fez por esta Póvoa ao ponto de ser justamente homenageada e perpetuada com o seu nome estampado numa artéria poveira – deparo com duas motos da GNR que abriam caminho a um numeroso pelotão de ciclistas em competição oficial, encaminhando-se para a Rua dr. Josué Trocado. Acontece que nessa altura a artéria estava em obras, com o piso a ser totalmente remodelado, o que obrigava a interrupção da circulação desde o cruzamento que liga a Rua Padre Leite de Morais à Rua Almeida Brandão, a caminho da freguesia de Beiriz. Ao tentar colaborar com o acerto da prova ciclista, dei sinal aos batedores da GNR que não era possível percorrer essa artéria, indicando a Rua de São Pedro como caminho mais seguro. E lá seguiram as motos, guiando o pelotão de ciclistas. Julgava eu, na minha inocência com rótulo de colaboração, que tudo ficaria resolvido, perto da Igreja Matriz onde a Rua da Igreja dá saída para a ligação com a então denominada “Estrada para Famalicão”. Tudo parecia bater certo para a prova dar entrada na EN 206 que liga Vila do Conde a Famalicão. Mas qual não é o meu espanto ao ver motos e ciclistas prosseguirem caminho pela Rua da Conceição. “Óh diabo, onde eles se meteram”, desabafei cá para com os meus botões, e apressei-me para ver como tudo foi “desenrascado”. O que vejo é o pessoal alertado, pois a prova velocipédica seguiu pela Rua 1.º de Maio, passou sobre a rústica “ponte do comboio”, entrou na Rua do Coelheiro (hoje Senhor do Bonfim), indo dar de caras com um “cu tapado”, que se estrangulava no final da Rua Silveira Campo. Mas que grande pandemónio se gerou. Os ciclistas tiveram que parar, os responsáveis pela prova e diretores dos clubes em altos berros… e depois foi dar por finda uma competição oficial.

O que se passou, afinal, de concreto? Segundo mapa da prova de posse da GNR, assinalava que ao seguir pela EN 205, o percurso “nascido” em Braga, tinha estampado: no final dessa EN estava indicado que a via terminava no “cruzamento do Timóteo”, para dar ligação à EN 13, e saída até ao Porto. Só que os “batedores” oficiais enganaram-se ao ver escrito que se tinha de virar à esquerda, antecipando essa viragem aí uma centena de metros, enganados pela indicação de uma placa usada vulgarmente, nessa altura, com o rótulo de OP (Obra Públicas) onde uma seta colocada num pequeno canteiro de terra, em forma de cruz, indicava o rumo dos veículos, neste caso a ligação para Beiriz. Engano oficial que levou ao termo de uma prova velocipédica destinada à classe de juniores, e engrossava o mapa das atividades da Associação de Ciclismo do Porto. Como foi o seu epílogo não constou muito a sua divulgação pública. O que não conseguiu foi apagar desta memória com mais de oito dezenas de anos um episódio curioso, talvez do desconhecimento geral, mas que deve, certamente, estar registado nos anais da Associação portuense. Quanto ao que tudo isso foi agora arrancado ao meu poeirento e ferrugento Baú de Recordações, fica à apreciação e paciência dos leitores deste Cantinho. Vou fechar a arca, desta vez, para qualquer dia tornar a abrir, se houver motivos para isso. Desculpem lá o abuso da vossa paciência, sem ponta de narcisismo, mas com a firme ideia de dar vida ao passado… com coisas da nossa terra.

Opinião Luís Leal – ‘O Meu Cantinho’