Formas de adoçar o bico

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A Festas de S. Pedro deste ano tiveram uma novidade na sua programação, ao fazer “ressuscitar” os tão tradicionais “Barquinhos Poveiros”, uma guloseima que, afinal, se enquadra às mil maravilhas nas outras gastronomias adaptadas à época, como as sardinhas assadas (ou fêveras) a broa caseira, o vinho (carrascão ou mais suave), tudo aquilo que o povo gosta e nem sempre os restaurantes e as próprias casas particulares não se interessam muito para alargar uma velha tradição.

Pois a partir deste 2023, entrou no rol das comemorações do Santo Apóstolo Pescador, para adoçar o bico aos “comilões”, uma iguaria com tradições locais e que andava no rol dos esquecidos: os Barquinhos Poveiros. A ideia da “ressurreição” tão badalada e com aprovação generalizada, foi da União de Freguesias Póvoa/Beiriz/Argivai, com Ricardo Silva à frente por ter uma atividade mais perto das altas esferas governamentais poveiras. Segundo dados vindos a público e confirmados pelo autarca da cidade, “a iniciativa tornou-se extremamente positiva”, ao ponto de serem vendidos (e consumidos) milhares de Barquinhos Poveiros, só pelas Festas de S. Pedro, ficando de pé a ideia que tem tendência para subir futuramente (e mesmo fora dos festejos de S. Pedro). Chegaram a vender-se entre 300 e 400 quase diariamente. O que ultrapassou a barreira do esperado. Basta dizer que de início aderiram 19 pastelarias na sua comercialização e o número final atingiu os 25, distribuídos por todo o concelho, portanto fora da área da sede do concelho. Foi uma forma de “passar a mensagem” de que se estabelecia “um produto que não existia, tornando-se como produto especial de S. Pedro”, revela Ricardo Silva, com a esperança de que até pode alavancar para ser criada a Confraria dos Barquinhos Poveiros, como já existem outras Confrarias fora dos tão tradicionais domínios eclesiásticos, como se contam pelos recantos poveiros. A criação do novo polo comensal até teve festa especial com um festival público onde a Capela Marta obteve um papel preponderante não só na apresentação pública no velho e renovado Teatro Garrett, mas antecedido da criação de um “spot” de rádio, para propagandear o evento (como agora se usa dizer), onde houve a preocupação “divina” de adaptar uma versão arrancada ao Cancioneiro Poveiro.

Depois de tanto se ter falado da nova invenção da União de 3 freguesias do concelho (com a mor em lugar de destaque, por motivos óbvios), faltou fazer uma divulgação de como “nasceram” os Barquinhos Poveiros. Uma história que afinal tem mais de meio século de nascimento.

Por inerência da profissão que abracei desde os meus verdíssimos anos, acabei por estar ligado aos “Barquinhos gulosos”. Era fruto unicamente, naquele tempo, da Pastelaria Poveirinha, ali trancada entre as estações do Caminho de Ferro, que ligavam o centro da Póvoa de Varzim ao Porto ou a Famalicão (já extinto) com a central das camionetas da carreira do Linhares ali ao pé, tudo reunido na Rua Almirante Reis, que também servira, tempo antes, aos trilhos dos “Americanos”, uma espécie de carros elétricos puxados à “força motriz” dos cavalos e que fazia a ligação a Vila do Conde. Tudo se alterou para melhor, graças ao poder do homem.

Como a Pastelaria Poveirinha ficava trancada entre os dois centros de transportes, era frequente tornar-se num ponto obrigatório para “matar o tempo” ou para retemperar energias tão necessárias para quem labutava praticamente de sol a sol para “ganhar a vida”. Segundo vim a saber pelos tempos fora, a ideia de serem criados os Barquinhos da Poveirinha, já com fama praticamente registada, foi de um habitual frequentador desse centro de iguarias, que tinha como missão quase diária “dar uma saltada” à Póvoa, em termos profissionais, ou até de veraneio. Esse cliente parece que tinha uma ligação profunda à arte da pastelaria e chegou a revelar os segredos dos barquinhos (ou coisa parecida) ao proprietário da Pastelaria Poveirinha, de seu nome completo Agostinho Maria da Silva que viria a acrescentar as velinhas de papel de várias cores para dar um toque poveiro à doçaria. Para a obra ficar mais artísticas foram adaptadas quadras mais ou menos populares. Lembro-me bem do trabalhão gráfico (naquele tempo sem as condições atuais onde os computadores dão boas ajudas). E quantas vezes metia a minha “colherada” na invenção das quadras só para variar, como mostrava interesse o proprietário da Poveirinha. Daí a minha ligação, desde os meus verdes anos aos “Barquinhos da Poveirinha” que tinham um segredo especial na sua confeção e nunca divulgado…a não ser muitos anos depois, após a morte do proprietário e que o sr. Brandão, imigrado do Brasil, deu continuidade nos estabelecimentos de pastelaria que distribuiu pelo centro da nossa terra.

O edifício da Pastelaria Poveirinha mantém-se ainda de pé, na sua traça modesta, paredes-meias com a então chamada Garagem do Eugénio Sá. Os vândalos, na sua “arte de mal fazer”, conspurcaram a frontaria e o portão de ferro que ainda ostenta a silhueta da tradicional mulher poveira no meio de pichagens “sem pés na cabeça”. Talvez à espera que alguém se lembre de dar vida a um prédio tão tradicional do meio urbano poveiro.

Afinal, agora que “ressuscitou” o tão tradicional doce dos “Barquinhos Poveiros”, seria altura própria para fazer a verdadeira história, não só da iguaria, mas também do berço onde nasceram os agora tão propagandeados Barquinhos Poveiros que não são mais do que os tradicionais Barquinhos da Poveirinha. Fica a ideia para quem quiser aproveitar. E que até serviria para alongar a atividade de uma União de Freguesias que tanto quer mostrar serviço em nome da comunidade poveira.

Opinião Luís Leal – ‘O Meu Cantinho’