Outro dia, ao fazer referência ao campo de jogos de Averomar, como último dos onze construídos em todo o concelho, saiu um erro crasso ao considerar que todos esses campos são de relva sintética. Não são todos, porque o de Laúndos é o único de relva natural. Fica a retificação. Mas esse erro voluntário serviu para avivar esta memória que me acompanha há mais de oito décadas e, voltando aos anos 80 (do século passado, está bem de ver), dou comigo nos tempos em que andava envolvido no fomento desportivo do concelho, que serviu de alicerces ao desporto popular poveiro para abrir os braços a todas as gerações, e chegar ao alto patamar que está à vista de todos.
Falando de Laúndos, recordo as canseiras em arranjar um espaço para a prática de futebol. Valendo-se, entretanto, da boa vontade do Manuel Coelho que junto à sua residência, à entrada da freguesia pelo lado poente, arranjou uma nesga de terreno (sua propriedade), com um riacho ao lado, para improvisar um campo de futebol, onde a juventude poveira disputava jogos, quantas vezes com forte competição popular. O seu café/bar anexo até servia para reunir os mais interessados na matéria desportiva, para traçar linhas, quantas vezes na companhia (e conselhos) do Padre Dinis Lopes, pároco da freguesia. De entre os habituais presentes, fazia parte um jovem “de vista escanada”, com boas ideias e que além de dirigente da recém-criada Associação Juvenil de Laúndos, fazia parte dos atletas que ajudaram a nascer o atletismo no concelho, em colaboração estreita com o “dono” do café/bar que fez nascer o futebol na freguesia com a denominação de Laúndos Futebol Clube. As reuniões (nos locais próprios) do Plano de Promoção de Atletismo contaram sempre com a presença do atleta/diretor Ismael, portador de fino trato, tornando-se em válido colaborador.
Os tempos, entretanto, foram passando e quanto ao papel do Ismael de Laúndos ficou entregue (e bem) ao José Manuel e ao Porfírio, e depois distribuído por outros fervorosos seguidores. O jovem “de bom trato”, tinha desaparecido. Soube-se depois que o serviço militar o levou para a força aérea, distribuindo a residência por terras de Lisboa e de Leiria, junto às respetivas bases. Apareceu, entretanto, ao convívio da sua aldeia volvidos 17 anos, já “crescido”, ostentando orgulhosamente as divisas de coronel da força aérea portuguesa… na reserva. Regressou sempre com a ideia de trabalhar pela freguesia onde nasceu, aparecendo recentemente a público com a criação do Clube de Cultura “Montis Lanutus”, fundado em 20 de outubro e cuja apresentação pública do seu projeto foi feita no passado sábado, dia 10 de dezembro, na sede da Junta de Freguesia onde também se sediou. Interessou-se em dar ao novo pólo cultural o nome da origem da freguesia – Montis Lanutus. E com isso enriquecer o acervo lanutense, que fez da freguesia uma das melhores apetrechadas do concelho da Póvoa de Varzim, em vários níveis.
Volvidas algumas décadas, Laúndos deixou de ser conhecida como terra das carquejeiras, quando as suas mulheres desciam até à sede do concelho, para venderem na “Feira da Lenha” junto à Igreja das Dores, ou apregoando a sua venda pelas ruas poveiras, a carqueja (erva brava dos matagais) muito útil para acender as lareiras tão típicas das cozinhas… e para tempero da culinária.
Mais tarde Laúndos passou a ser conhecida nos Cortejos de Oferendas a favor do Hospital (ou desfiles etnográficos) e pelas suas festas de cariz tão popular da Senhora da Saúde (primeiro domingo de Agosto), onde a fama das bandas de música ultrapassou barreiras geográficas ao ponto de “obrigar” à construção de dois coretos fixos, junto à Igreja, agora paroquial e até classificada de Santuário por força das peregrinações que “despovoam” a Póvoa, concelho e localidades vizinhas desde 1946, cada vez com mais aderência de devotos, ao ponto de atingir os 30 mil quando se transformou em Peregrinação Arciprestal. Os coretos lá estão, orgulhosamente, como únicos no concelho da Póvoa de Varzim – sem contar, claro, com o artístico da Praça do Almada.
Outra festa que ganhou fama, é a dedicada a S. Félix (primeiro domingo de Setembro), no alto do Monte que esteve na nascença da freguesia e aos poucos se tem transformado em local turístico por excelência, com uma pousada de luxo (nascida pela mão do jogo explorado pela extinta Sopete), os tão típicos moinhos de vento que mais tarde alguns deles serviram de residência de veraneio, e mais recentemente de polo musical onde um clérigo da paróquia, com “queda” para DJ, tem feito as delícias do amantes musicais para arranjar meios financeiros para as suas organizações “a bem do povo”. Sem esquecer o marco geodésico alvinegro, plantado altaneiro na sua forma pontiaguda, desde 1850, que, segundo rezam velhos relatos, serviu para reconhecer geograficamente toda a área envolvente, por terras de concelhos vizinhos e servindo de suporte (consta-se) para abertura da estrada ligada ao mar que era prevista para uma légua (cinco mil metros) e que se prolongou para sete quilómetros e meio, em documento real datado de 1033, e daí ter direito à classificação da tão tradicional e longa Légua da Póvoa.
O Monte de São Félix, encimado pela capelinha dedicada ao Santo Eremita “que encontrou ali o corpo de S. Pedro de Rates, primeiro bispo de Braga entre os anos 45 e 60”, e também considerado como santo milagreiro para retirar os cravos das mãos (pequenos furúnculos ou verrugas na pele) – e daí a oferta de flores com esse nome e das galinhas pretas da tradição no seu dia de festa popular – tem 202 metros de altura e foi enriquecido com um escadório de 328 degraus, desde o santuário da Senhora da Saúde até acabar num sumptuoso Monumento ao Emigrante, mandado construir com o dinheiro granjeado nos Brasis pelo saudoso benemérito Manuel Giesteira, como “vingança” sobre os seus conterrâneos aguçadourenses que lhe negaram uma implantação turística, talvez por não ser encontrado local apropriado.
E quanto ao campo de jogos, principal culpado por toda esta divagação, apareceu com o nascimento da tão movimentada Zona Industrial, junto à Estrada Nacional que liga a Póvoa a Braga, no lugar de Águas Férreas, por ali existir uma “fonte milagrosa” com água contendo o ferro muito útil ao corpo humano, como revelam documentos ligados à medicina. Esse espaço desportivo, pertença da Junta de Freguesia, tem como principal utilizador a mais tarde criada oficialmente Associação Cultural e Desportiva de São Miguel de Laúndos, em homenagem ao patrono da freguesia, santo muito querido nos meios rurais onde a sua bênção é desejada por alturas da festa anual, em setembro, sempre com o desejo que São Miguel (ou Arcanjo São Miguel) encha a eira com os cereais colhidos da terra, frutos das sementeiras feitas com tanto trabalho e zelo.
Nesta hora de recordações vem à memória o saudoso Padre Dinis Lopes, com quem convivi desde tenra idade. Foi por seu intermédio que a igreja paroquial passou para o Santuário, à entrada da via que liga a freguesia ao Monte de S. Félix, retirando esse velho direito à mais acanhada igreja situada no lugar com a mesma denominação (como se compreende), onde se situa ainda a residência paroquial mais a sua lendária ramada, onde uma noite ficou dependurado o corpo de um salteador, atingido com uma bala de carabina disparada como defesa pelo pároco da freguesia, segundo reza o livro “Zé do Telhado no Minho – fastos das maltas de ladrões”, da autoria do esposendense Manuel de Boaventura, falecido com 88 anos no princípio da década de 60 do século passado, na sua freguesia de Vila Chã, e que tem o seu nome bem ligado à Póvoa de Varzim, não só através dos seus livros de contos, como também pela colaboração sempre bem aceite no extinto “Comércio da Póvoa”, ao ponto de merecer a perpetuação do seu nome numa artéria da cidade poveira, para os lados dos Mourões.
E que mundo de recordações nos trouxe a oficialização do “Montis Lanutus” que tem à sua frente, como
fundador, não o Ismael “de vista escanada” dos anos 80, mas sim o Coronel Ismael Gomes Alves, a quem presto a minha singela homenagem neste arrazoado de coisas que transformaram Laúndos de aldeia de carquejeiras, madeireiros (simbolizados no seu brasão) e artesãos de peças de linho e mantas de trapos tecidos nos tão tradicionais teares manuais, numa bem apetrechada freguesia poveira que teve a arte e poder de sacudir uma lixeira e transformá-la num local aprazível de lazer onde prevalece o sonho do Abraão Cruz de ali nascer um amplo espaço para veículos aéreos… o que até condiz com a vivência de quem acaba de criar um espaço cultural vocacionado nas vertentes das Letras, Artes e História, situado na parte mais alta do concelho da Póvoa de Varzim.
Que me desculpem esta longa narrativa os que tiverem a pachorra de ainda me aturarem neste descobrir de velhas estórias que engrossam a História Poveira.