Os carros passam sem se preocuparem com caminhantes nos passeios. Ao subir a rua, há vários símbolos do Caminho. As setas amarelas e azuis, as conchas, a cruz vermelha. Mas mochilas pesadas e botas gastas, nem as ver. Em S. Pedro de Rates, na Póvoa de Varzim, o Caminho de Santiago faz parte do quotidiano de todos. É normal ver centenas, senão milhares, de peregrinos por ano nestas ruas e caminhos. Os votos de ‘bom caminho’, os acenos de mãos ou um simples sorriso são gestos já comuns e até esperados, ensinados desde cedo. Mas 2020 foi diferente, as estradas estiveram vazias.
Ao entrar no albergue ratense, o primeiro albergue moderno de Portugal dedicado aos peregrinos de Santiago, já não se ouve o murmurinho de várias conversas alheias. Neste momento, o único peregrino albergado tem quatro patas. Shiba era um cão de rua que pediu abrigo já durante a pandemia. Da sua casota, identificada com o seu nome e feita à medida, estranha pessoas novas: ultimamente não tem visto muitas.
“Em setembro tivemos 155, em outubro tivemos à volta dos 60 peregrinos, novembro foram 6 ou 7 e em dezembro tivemos dois”. Os números são apresentados por Cristina Torres, presidente eleita da Associação Ventos Peregrinos. É a associação que trata da organização e logística do albergue e, este ano, viu o seu trabalho inesperadamente reduzido aos mínimos.
Em março, com o agravar da pandemia, fez algo que nunca pensou fazer: fechar o albergue. Foi uma estreia: “este albergue nunca tinha fechado, foi a primeira vez desde que existe”, conta. E, por isso, o dia 13 de março fica marcado como “um dia muito escuro para nós”. Cristina relembra que teve “de reunir aqui os peregrinos e dizer ‘pessoal, não vão mais além, isto está muito perigoso, vão correr riscos, depois é possível que não vão poder sair do país’”.
E assim foi. Desde aí, estiveram fechados. Apenas há alguns meses, em setembro, conseguiram reunir todas as condições para voltar a abrir as portas: até aí, não tinham conseguido planear um mês em que, todos os dias, estivessem disponíveis hospitaleiros voluntários suficientes para acolher e assistir aos peregrinos.
Dificuldades de subsistência
É aí que assenta a essência do albergue e da associação: trabalho voluntário. Por agora, têm-se aguentado, mas a presidente eleita mostra-se na corda bamba. Não esconde que “muitos vão fechar, não vão conseguir se aguentar. Mesmo nós não sabemos [se conseguirão continuar]”. O outro fator que mantém as portas abertas são as doações. O albergue é autossustentado, apoiado por aquilo que quem por aqui passa quiser deixar. Sem peregrinos, esses valores ficam reduzidos a pouco ou nada. “Agora, não temos entradas de donativos, mas temos ainda despesas, tentando manter a casa aberta”, desabafa Cristina. Mas a esperança é a última a morrer: enquanto houver vontade, o albergue permanece em pé, porque “o Caminho existiu sempre e vai continuar a existir”.
Entretanto, lá do fundo, ouve-se Shiba a anunciar a chegada de alguém. Com pouco mais de 20 anos, Giovanni e Juliette, ele italiano e ela francesa, procuram uma cama depois de um dia de caminhada. Conheceram-se no Caminho e passaram a fazer companhia um ao outro. Inicialmente, pensavam parar apenas em Santiago, “mas não era o suficiente. Decidimos continuar juntos até ao Porto, Fátima, Lisboa e depois o contrário”, explica Juliette.
Pela viagem que já vai longa, são poucas as pegadas que veem no chão: em França, em pouco mais de um mês, Juliette viu “sete peregrinos mais ou menos”. É natural: uma pandemia, com todas as restrições, confinamentos e isolamentos associados, não parece ser a altura apropriada para peregrinar. Mas os jovens mostram-se confiantes. “Eu sou jovem, estou cheio de vida, por isso não é um problema real para mim”, esclarece Giovanni. E Juliette concorda: “é melhor para mim continuar a andar do que estar em casa a fazer nada, sem trabalho, numa situação triste”.
Por isso, depois de um dia na estrada, é em Rates, a milhares de quilómetros de casa, que vão passar a noite. Para onde dormir, têm muita escolha: todas as camas estão disponíveis. E amanhã, antes de continuar a viagem, podem fazer as compras necessárias, mesmo ao lado do albergue.
Minimercado afetado pela pandemia
O minimercado de Lurdes Silva é discreto, apenas identificado por uma placa que o anuncia em português, inglês e espanhol. Lá dentro, a realidade muda: as prateleiras estão repletas de tudo o que possa vir a ser necessário. Desde porta chaves a postais e isqueiros, bem como a indispensável comida e outros bens essenciais, Lurdes sorri ao dizer que “tentamos servi-los naquilo que realmente necessitam”.
O negócio foi um muitos que foi afetado pela crise dos peregrinos. Nesta mesma rua, existe ainda um café e um restaurante que já não abrem a porta tantas vezes. “Este ano foi um desabar”, suspira Lurdes, “porque nos primeiros meses ainda passaram algumas pessoas, mas depois ali no julho e assim começaram a passar menos”. No fim do verão, ainda se viu uma luz ao fundo do túnel, com a subida dos números – que, mesmo assim, não tinham “nada a ver com os outros anos”. Mas, já no fim de 2020, “o novembro fechou por completo e o dezembro também”. Ao comparar com anos anteriores, só consegue dizer que “foi uma diferença muito grande, quase como o preto para o branco”.
Sobre o perfil de quem passa, Lurdes nota que são quase todos jovens, porque são os que pensam que “se tiverem de apanhar [o vírus], apanham”. Mas sublinha que os mais velhos também fazem falta no Caminho. “Porque eles gostam imenso de fazer os caminhos, eles fazem isto por um alívio, de descanso do trabalho, e porque gostam de conhecer os hábitos e as maneiras de ser de cada um”, explica. Por isso, não tem rodeios ao dizer que a pandemia “foi prejudicial” para quem se comprometeu em ir até Compostela durante 2020, “claro que foi. Muito”.
Fechado desde 13 de março
A alguns quilómetros de Rates, perto do mar, o padre Nuno Rocha tem a opinião que esse não é um grande problema, porque atualmente “há muitas pessoas a fazerem o Caminho, mas com perspetivas muito diferentes, sem propriamente uma promessa de fé verdadeiramente”. O padre é o responsável pela paróquia e albergue de S. José de Ribamar, na Póvoa de Varzim. Em anos anteriores, acolhia os peregrinos de Santiago e de Fátima. Acolhia, mas agora com a pandemia está fechado. A partir do dia 13 de março, “nunca mais abrimos”, declara. Admite que ainda “houve algumas abordagens, se seria possível, se seria importante ou necessário acontecer isso, mas achamos que não”. Optaram pela prevenção, por “evitar chamar as pessoas de fora e trazerem [o vírus] aqui para um local destes ou porem-se também em risco”.
Relativamente ao impacto que a situação pandémica teve nos peregrinos, lembra que a privação de algo é sempre complicada. “Ao que fomos privados todos nós, também ficamos de certa forma pobres, mais empobrecidos de alguma coisa. O peregrino também, evidentemente”.
Não descura a importância do Caminho, mas lembra que a paragem física não significa uma paragem total. A peregrinação na rua pode ter ficado suspensa, mas a de espírito continua, até porque “o peregrino é aquele que olha mais além”, é “aquele que faz um caminho interior, mas que não deixa de caminhar, de ir ao encontro, de ir na busca”. Ao terminar, deixa um apelo: que esta paragem nas romarias e o passar mais tempo em casa sirva como tempo para reflexão e motivação, “para que nós, ao pararmos, fruto das obrigações e daquilo que nos impõe esta pandemia, possamos olhar mais além e nunca desistir dos nossos objetivos”.