SE DEUS QUISER, UM DIA TAMBÉM SERÁ VELHO – Opinião de Ana Sofia Ferreira

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No mês em que se assinalou o Dia Internacional das Pessoas Mais Velhas, recordo um episódio que presenciei há algum tempo e que ainda hoje me incomoda, não pela sua singularidade, mas por ser exemplificativo de tantos outros em diferentes contextos. Acompanhei uma pessoa mais velha a uma consulta médica e, por mais que eu tentasse fazer com que o diálogo fluísse diretamente entre médico e paciente, a conversa acabava sempre por se dirigir a mim: “Nestas idades, é normal ter dores.” Sem que fosse essa a intenção, a paciente foi ficando à margem da sua própria consulta, enquanto os sintomas que relatava iam sendo desvalorizados. Saímos do consultório sem respostas concretas e com uma profunda sensação de impotência. Este episódio ilustra como o idadismo se perpetua de formas subtis e muitas vezes involuntárias, quando permitimos, em silêncio, que a dignidade e autonomia sejam comprometidas, mesmo sem má intenção.

Esta forma de preconceito, ao contrário do racismo ou sexismo, permanece socialmente aceite e raramente questionada. Tratamos os nossos seniores como telefones de teclas: funcionam, mas assumimos que são obsoletos e precisam de ser substituídos. A infantilização sistemática manifesta-se em gestos aparentemente inócuos: auxiliares que escolhem a roupa, o horário de acordar, a temperatura da água do banho e até o canal de televisão sem sequer questionar preferências; familiares que tomam decisões “pelo bem” da pessoa. Tudo isto perpetua uma cultura de diminuição da autonomia. É talvez a forma mais cruel de idadismo porque vem embrulhada em “preocupação”.

Esta despersonalização contamina sectores cruciais. Nos cuidados de saúde, sintomas são frequentemente atribuídos à idade sem investigação adequada, levando a diagnósticos tardios. No mercado laboral, trabalhadores experientes enfrentam pressões subtis para antecipar a reforma, privando as empresas de conhecimento institucional insubstituível.

Confrontados com o envelhecimento populacional acelerado, vários países desenvolveram estratégias concretas de combate ao idadismo. O Japão, desde 2021, obriga empresas a proporcionar oportunidades de trabalho até aos 70 anos. França estabeleceu acordos que promovem “trabalhadores experientes”, incluindo entrevistas aos 45 anos para adaptar funções e reorganizar o trabalho. São exemplos de políticas que reconhecem valor em vez de presumir obsolescência.

O idadismo é um fenómeno mais frequente que o sexismo e o racismo, mas paradoxalmente menos estudado e combatido. É o único preconceito que, se tivermos sorte, nos atingirá a todos. Por isso combatê-lo não é altruísmo, é legítima defesa. Hoje discriminamos os outros, amanhã seremos os discriminados.

Portugal precisa urgentemente de uma estratégia nacional anti-idadismo que inclua legislação específica equiparando a discriminação etária ao racismo; campanhas baseadas em evidência científica; incentivos empresariais para retenção de talento sénior; e arquitetura urbana que promova independência. Com 35% da população prevista para ter mais de 65 anos em 2050, esta não é apenas uma questão de solidariedade, é de sobrevivência económica e social.

Envelhecer é um privilégio negado a muitos, nunca uma falha pessoal. Cada ruga conta uma história que nenhum jovem consegue contar. Cada cabelo branco representa conhecimento que nenhum manual replica. Numa economia baseada no conhecimento, desperdiçar décadas de experiência acumulada é um luxo insustentável. Está na hora de tratar o envelhecimento como conquista, não como derrota.

Da próxima vez que vir alguém falar alto para uma pessoa mais velha sem saber se tem dificuldades auditivas, ou escolher por ela sem perguntar a sua opinião, lembre-se: está a ver o seu próprio futuro. E a decidir como quer ser tratado.

 

Artigo escrito por Ana Sofia Ferreira, gerontóloga e amiga da Associação de Solidariedade Social de Santa Cristina de Malta (SANCRIS).