A pandemia da covid-19 e as repercussões na sociedade, a cultura e a paixão pelas artes, e uma visão global da política no concelho poveiro, são temas que Afonso Pinhão Ferreira, presidente da Assembleia Municipal, aborda sem quaisquer restrições. Numa grande entrevista concedida a este jornal, o médico ortodontista e empresário confessa que não ocupará “cargos governativos”, mas “cá estarei para opinar”
A pandemia da covid alterou a convivência em sociedade. Como presidente da Assembleia Municipal qual a sua análise nas medidas tomadas pelo município e também pelo Governo?
É, de facto inegável, que esta inesperada pandemia veio influenciar a sociedade, modificando as relações humanas e, inclusivamente, as dinâmicas político-governativas nas mais diversas comunidades. Em toda a minha existência é a primeira vez que estou impedido de sair de casa num dado período de tempo, o que tem uma implicação restritiva da liberdade, a qual é geradora de uma sensação de perda, emotivamente desagradável.
Li há pouco um artigo muito interessante do sociólogo Boaventura de Sousa Santos, que nos alerta para as eventuais e preocupantes consequências desta pandemia, sendo que uma delas poderá traduzir-se numa mudança do modelo civilizacional que hoje habitamos. O pensador dá a entender que o regime neoliberal poderá claudicar, já que se tem verificado ultimamente que são os Estados, e não os mercados livres que podem socorrer a vida dos cidadãos. Diz também que a globalização que caracteriza a nossa hodierna existência, pode colocar em risco a sobrevivência dos cidadãos, se cada país não produzir os seus próprios bens essenciais, cito. Daí podermos conjeturar novas formas organizativas da sociedade.
Já compreendemos que a crise pandémica que nos flagela, tem que ser batalhada em várias frentes, com decisões políticas firmes e eficazes do ponto de vista social, sem perder de vista os prejuízos advenientes dos efeitos colaterais. A história da humanidade, como nos diz Jaime Nogueira Pinto no seu recente e recomendável livro “Contágios”, mostra um percurso martirizado por sucessivas pestes, causadoras de matanças demograficamente devastadoras, não só pela doença, mas também e sobretudo, pelas consequências destruidoras surgidas da miséria e da fome, que as crises económicas resultantes provocam.
Esse conhecimento e os benefícios sobrevindos das facilidades da comunicação social e dos avanços na biotecnologia do nosso tempo, bem como as políticas de proteção social, permitiram que a perda de vidas humanas com a Covid-19 seja exígua, quando comparada com outras pestes que feriram a humanidade. Porém, mesmo que se encontre a prevenção e/ou a terapêutica da doença, devemos estar acautelados relativamente aos seus efeitos socioeconómicos. O conhecimento do nosso passado, avisa-nos que serão indispensáveis tomadas de decisões políticas nos âmbitos internacional, nacional e local, tendo em vista o amparo das comunidades humanas.
Pois bem, respondendo à questão e tentando não arrogar uma visão partidária sobre as ações do Governo de Portugal no que concerne à pandemia, entendo que as decisões e atos levados a efeito pecaram por carência de firmeza e têm sido assaz confusas para as populações. Nalguns casos até injustas, dado que perante situações sobreponíveis se tomaram permissões e proibições dissemelhantes. Depois vêm as desculpas fundamentadas no inusitado da situação, na imprevisibilidade do sucedido, ou a alteração em cima da hora do que foi decidido bem antes da hora. Pode-se ir a uma manifestação de caráter político, permitir-se a assistência de uma prova automobilística ou consentir encontros de caráter religioso, mas impede-se a assistência a um jogo de futebol. Não se pode sair de casa a partir da uma da tarde, mas pode-se encher o depósito de gasolina, passear o animal de estimação ou ir ao supermercado; francamente!? Apesar dos avisos dos peritos em saúde pública e dos profissionais de saúde, fica também a impressão que o Governo de Portugal não se preparou devidamente para esta mais que previsível segunda vaga, que se adivinha de dimensão incomportável pelo Serviço Nacional de Saúde (SNS).
Já relativamente às medidas que a Governo da Póvoa de Varzim assumiu e que tem vindo a implementar, tendo em conta todas as dificuldades que ressaltam das indecisões e incertezas do Governo Central e da dificuldade de comunicação com as instâncias da saúde, admito uma apreciação abertamente positiva. É difícil olvidar a decisão espinhosa do Sr. Presidente da Câmara em encerrar a marginal ainda em março, “em cima do acontecimento”, quando a comunicação social noticiava a nossa cidade como um mau exemplo, onde aconteciam aglomerados de pessoas a caminhar à beira mar. Já não bastava o infortúnio de ter sido detetado cá o primeiro caso Covid a nível nacional.
Na verdade, o executivo camarário tem auxiliado e até patrocinado as unidades de saúde local, designadamente na colocação de um centro de testes junto ao hospital, na disponibilização de hospedagem hoteleira para profissionais de saúde, e com a atitude preventiva da montagem de camas na Casa Escola Agrícola Campo Verde. Sei que o Presidente Aires Pereira tem assegurado que o seu executivo ateste todo o auxílio que se demonstre preciso nos estabelecimentos educativos, não fora as alterações que o modelo de ensino sofreu com a virose contagiante. É do meu conhecimento também que as decisões são concertadas com as autoridades de saúde, as autoridades marítimas e militares, a proteção civil a as diversas associações, como seja o estabelecimento dos horários dos estabelecimentos comerciais, as resoluções relativamente às Festas de S. Pedro e os condicionamentos na época balnear, entre muitas outras.
Apreensiva com estas questões e outros sim com os seus munícipes, a Assembleia Municipal concretizou duas videoconferências com os líderes de bancada dos partidos lá representados e o Sr. Presidente Aires Pereira, para discussão dos problemas e sempre com o propósito de encontrar soluções consensuais.
Enquanto Presidente da Assembleia Municipal reconheço um trabalho de mérito do poder local, apesar do inusitado da situação e das dificuldades que advêm na concertação das deliberações dos governantes nacionais e dos locais, e, por isso, felicito o Presidente da Câmara e o seu executivo camarário.
Tem sentido no órgão que lidera, que todos os partidos têm sido responsáveis e solidários com as decisões do executivo autárquico?
Indubitavelmente. Os partidos representados na Assembleia Municipal têm evidenciado uma invulgar cultura cívica e um espírito de cidadania merecedores de elogio. Mesmo nos desacordos, sobressaem opiniões contra argumentativas educadas. Sente-se que têm o município num lugar acima do partido político. Devo aliás afirmar, que me sinto prestigiado por me ser consentido dirigir uma plateia que sabe coabitar na diferença.
No momento atual, a Assembleia tem aprovado as despesas inerentes aos efeitos da Covid-19, as quais são determinadas e ratificadas pela Câmara Municipal antes da decisão deliberativa, não fora a premência das necessidades. Para que tenham uma ideia, desde o início da pandemia até ao dia 12 de novembro esse valor rondava cerca de um milhão de euros.
Sobre esta grave situação, conversa regularmente com o presidente de Câmara Aires Pereira, de como se pode combater a mesma?
Os Presidentes da Câmara e da Assembleia Municipal, desde que legitimamente ocupam esses distintos cargos, acordaram em reunir-se ordinária e periodicamente, o que sempre tem ocorrido. No respeito pela lei e por razões óbvias, o responsável pelo poder deliberativo deve estar bem informado sobre as decisões tomadas ou a tomar pelo poder executivo.
Devo assegurar aos leitores que, tem categoricamente havido uma convivência politicamente sã e de franco respeito entre os cargos que representamos, e as pessoas que somos.
São encontros politicamente profícuos, onde trocamos impressões que entendemos serem de interesse para o município poveiro, sendo claro que nelas cabem também as preocupações advindas da presente crise pandémica. As inquietações têm, por isso, vindo a aumentar na proporção do aumento exponencial dos contágios, que desde outubro se caracteriza por uma assustadora dilatação.
As medidas a tomar são compreensivelmente deliberações complicadas, não fora a circunstância de afetarem a vivência dos munícipes, e também o facto de haver nas decisões do Governo Nacional e da própria Direção Geral de Saúde (DGS), aceitáveis dúvidas e demasiadas exceções, dada a inusual ocorrência, a sua desconhecida origem, o seu percurso atípico e a dificuldade de avaliar o perigo que representa.
Ainda nesta batalha diária, para além do distanciamento social, a higienização, o uso da máscara e de outras medidas, no seu entendimento há outras ações que poderiam já ter sido tomadas?
É claro que, idealmente, se fosse possível durante um significativo período não nos aproximarmos uns dos outros, bem como mantermos um altíssimo grau de higiene e de filtragem protetiva das partículas aéreas, além do cumprimento dos protocolos emanados das instituições de saúde, retiraríamos ao vírus a sua razão de existir. Morreria por irrelevância; perderia a sua malignidade e passaria à sua insignificância dimensional.
Só que esse ideal, obrigaria a confinamentos severos que impossibilitariam o funcionamento total das instituições da sociedade, como as fábricas, as escolas, o comércio em geral, e outros; sucederiam efeitos desastrosos do ponto de vista económico, laboral e social. Inclusivamente, ocorreria certamente um aumento das doenças habituais e de patologias colaterais, como as surgidas pela impossibilidade do cumprimento dos cuidados preventivos e terapêuticos e as psicológicas, como aliás a estatística já faz notar.
Para além do que tem sido realizado, pouco mais se poderá fazer de momento, do que esperar por medicamentos de combate à doença e por uma vacinação em massa. Até lá, poderemos melhorar bastante a consciencialização pública perante a pandemia e os apoios psicológicos aos que sofrem nas mais variadas vertentes.
O pânico não resolve a situação, mas é indispensável consciencializarmo-nos que não são suportáveis financeiramente mais medidas que as que estão a ser tomadas. Temos que compreender a dificuldade dos governantes perante esta situação obtusa, inesperada e de abrangência mundial. Do meu ponto de vista, têm sido tomadas as medidas possíveis e as pequenas falhas são pouco criticáveis, dado que se tem demonstrado haver respeito pela pessoa humana, dando-se à saúde pública o primeiro lugar das preocupações. Digo-o, quer relativamente à governação europeia e nacional, quer no que concerne à governação da autarquia poveira.
Se não conseguirmos reduzir o contágio, há de facto, a possibilidade de colapso financeiro com repercussões muito sérias na vida dos cidadãos. Cabe a cada um e a todos cooperar para que isso não venha a ser uma realidade.
Como tem observado a atitude dos poveiros perante este período difícil?
Numa análise muito geral, os poveiros têm-se mostrado disponíveis para acatar as decisões dos Governos nacional e local. Há, felizmente, uma paz social que se vive no nosso município e a situação, apesar da gravidade, tem sido vivida com alguma tranquilidade. As pequenas exceções não são estatisticamente significativas.
Como médico e como autarca, este longo período de outono e inverno, vai ser duro e muito complicado?
Tudo indica que sim. Seja pelas previsões dos peritos em saúde pública, seja pelos exemplos noutros países, a pandemia está a expandir-se, os hospitais e meios de salvamento a tornarem-se exíguos para tanta gente e, a vacina, mesmo que surja rapidamente, levará muito tempo a conseguir-se a sua produção, comercialização, distribuição e posterior vacinação às populações.
É possível combater a pandemia em simultâneo com medidas de confinamentos parciais e com a economia, educação e restante movimento da sociedade, ou seja, tudo a funcionar?
Eu diria que tem que ser. A maior parte dos países, incluindo o nosso, não tem capacidade financeira para operar confinamentos nacionais e parciais, e a sociedade não pode parar os seus sistemas educativos e as suas instituições laborais, sociais e culturais.
Todos temos que ter consciência da situação, e compreender que a pandemia não foi provocada por quem governa, e só não se tornou numa mortandade semelhante à do vírus influenza da gripe espanhola de 1918, que ceifou a vida a mais de trinta milhões de seres humanos, devido ao atual estado de conhecimento, biotecnologia e rapidez de comunicação nos cuidados a desenvolver.
Todos estamos a sofrer com esta virose, não apenas pelos efeitos patológicos, mas pela quebra das rotinas laborais e pela perda de rentabilidade das empresas e pessoas. Se pararmos totalmente, sofreremos malefícios incalculáveis num futuro próximo, o qual, mesmo assim, não se adivinha agradável.
Vêm aí as Festas de Natal e Ano Novo, que usualmente se revestem de significativa importância para as empresas de viagens, hotelaria e restauração, bem como para o comércio em geral. Certamente que se vão avolumar os prejuízos nestes negócios. Localmente, sei que o Senhor Presidente da Câmara tem tomado diversas medidas no sentido da proteção do comércio local, embora estejamos algo pessimistas, dado o aumento exponencial dos contágios e as consequências que virão das medidas a implementar para o tentar reduzir, entretanto.
Nos últimos dias surgiram notícias em que o SNS (Serviço Nacional de Saúde) tem estabelecido acordos com os hospitais privados para ajudar na hospitalização de doentes infetados. Esta ação, não terá sido tomada muito tardiamente pelo Governo?
Os Governos de Portugal têm um orçamento anual a que se obrigam, além da gestão das dívidas que o país assumiu. Estabelecer parcerias com instituições privadas de saúde, tendo um dos melhores serviços nacionais de saúde da Europa, mesmo considerando o número de recursos humanos, implica aumentar substancialmente a despesa de um país altamente endividado.
Claro que a vida humana está em primeiro lugar, e, se há a possibilidade de não podermos acudir aos necessitados, então não restará outra solução que aumentar esse endividamento e pedir à Assembleia da República que aprove os orçamentos retificativos que se venham a mostrar necessários.
Entendo que se trata de uma decisão política muito difícil, mas que terá que vir a ser tomada, mesmo pesando as desastrosas consequências financeiras. Percebe-se então que se tenha esperado pela certeza dos números galopantes da pandemia, para se efetuarem esses contratos.
Pelos contactos que certamente tenha com especialistas, acredita que em breve possam existir vacinas e medicamentos que diminuam a propagação da infeção?
Acredito piamente na inteligência humana e na investigação científica. Estou convencido, pelas informações médicas, universitárias e noticiosas, que até janeiro de 2021 já teremos vacinas com alto grau de eficácia e poucos efeitos colaterais.
Há muito dinheiro investido pelos países e farmacêuticas para que isso seja uma realidade quase imediata. No entanto, a descoberta, por si só, não vacina de imediato as populações, sendo necessário o período considerável antes de nos ser acessível a bendita injeção.
Para além da política local, é uma pessoa com dinamismo empresarial de várias décadas. Do lado da economia, como é possível aguentar uma empresa durante este longo período?
Essa é uma pergunta de complexa resposta. O facto de Portugal ser um país modernizado e ter uma vivência nacional partilhada na União Europeia, é um benefício incalculável. As ajudas financeiras e a partilha dos problemas ajudaram Portugal e os portugueses a suportar a pandemia e os seus efeitos, designadamente os confinamentos.
A minha empresa foi obrigada a parar a sua atividade durante 45 dias e o recomeço da atividade foi forçosamente lento. Apesar da extrema qualidade com que sempre operamos, tivemos, mesmo assim, que fazer alguns investimentos no sentido do aumento da segurança e diminuição dos riscos. Para além disso, sem qualquer rentabilidade, tivemos que pagar os ordenados dos funcionários e as obrigações com que estamos comprometidos. Claro que a possibilidade de atraso nos pagamentos da segurança social, as moratórias, os empréstimos sem juros e outras ajudas disponibilizadas, permitiram vencer a crise no momento. Todavia, como homem avisado pela experiência que os anos de vida me concedem, iremos ter que pagar estes favores mais tarde, de uma forma ou de outra.
Em Portugal pagam-se demasiados impostos e há imensas responsabilidades monetárias para cumprir as incontáveis leis que anualmente se fazem. Atualmente as empresas têm uma rentabilidade muito inferior há existente entre os anos noventa e a primeira década deste milénio. Poderia aqui enumerar uma lista considerável de taxas e obrigações que a minha Clínica paga hoje e que não pagava ontem. Só para exemplo, há cerca de dois anos criaram a lei da proteção de dados que nos obrigou a custos informáticos apreciáveis e a uma avença, na medida em que as empresas como a ORTOPÓVOA são obrigadas a contratar um perito na verificação periódica da conformidade no que se refere à proteção de dados. Soube agora que se prepara mais uma taxa para quem tem aparelhos radiológicos dentários.
É muito difícil viver em Portugal com esta sobrecarga fiscal e burocrática, sobrando pouco mais que o indispensável aos empresários privados. Está-se a destruir as pequenas e médias empresas privadas e paralelamente a classe média, ou seja, a componente rentável mais significativa da sociedade. Temo que muitas empresas se tornem insolventes, porque o seu grau de endividamento já era problemático antes desta desgraça.
Aquelas empresas que em termos de gestão detinham um ponto de equilíbrio estável, sem sobrecarga de endividamento e que simultaneamente não tenham demasiados funcionários, poderão não só sobreviver, como até melhorar o seu protagonismo, transformando a crise numa janela de oportunidade.
“Os partidos representados na Assembleia Municipal têm evidenciado uma invulgar cultura cívica e um espírito de cidadania merecedores de elogio”.
“O pânico não resolve a situação, mas é indispensável consciencializarmo-nos que não são suportáveis financeiramente mais medidas que as que estão a ser tomadas”.
“Todos estamos a sofrer com esta virose, não apenas pelos efeitos patológicos, mas pela quebra das rotinas laborais e pela perda de rentabilidade das empresas e pessoas”.
“Se não conseguirmos reduzir o contágio, há de facto, a possibilidade de colapso financeiro com repercussões muito sérias na vida dos cidadãos”