A macieira das maças vermelhas

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Hoje caiu a macieira. Um pedaço de mim caiu com ela.

A macieira esteve sempre no centro do meu quintal. Lembro-me bem das maçãs vermelhas, que mesmo pequenas tinham um sabor divinal. Se dúvidas houvesse, bastava bem perguntar aos bicharocos que tentavam comê-las, sempre, primeiro do que eu. Quando eu era pequena brincava, diversas vezes, nesta árvore e aproveitava um dos braços mais fortes para dar cambalhotas. Sentia-me uma verdadeira atleta, e todas as outras árvores do quintal aplaudiam, pensava eu. Outros tempos…

Hoje foi com muita pena que olhei pela janela, e a vi caída.

É assim a vida, bem sei. Mas não deixa de ser estranho ver pedaços da nossa história a cair.

É o tempo a passar, sou eu a envelhecer.

Lembro-me que dava apenas uma “trinca e meia” e a maçã desaparecia, mas era tão saborosa que nunca mais em tempo algum provei, ou provarei coisa igual. Jamais esquecerei a macieira de maçãs vermelhas. Hoje caiu e lá está, continuamente, a ser vergastada pela chuva incessante.

Fosse a macieira de pedra como é o aqueduto que passa, aqui, em Argivai e talvez também ela estivesse de pé. Os seus braços como os arcos de volta perfeita segurar-se-iam num longo abraço desde o passado. Estaria eu, sempre, à sua volta como os pedreiros a terminar a obra. Aguardaria a maçã de ouro, como as freiras do convento aguardavam o ouro da água. Faria várias caminhadas diárias até à macieira, assim como os peregrinos no longo percurso até Compostela. Iria cuidar desta árvore, podar ramos velhos, limar a pedra arisca, tal como, os limpadores das pias. Compreenderia até onde iam as suas raízes, como de um mapa dos propietários dos terrenos se tratasse.

Também a macieira seria uma barreira entre o ter fruta e o não ter, como o aqueduto é uma barreira para tantas outras considerações.

Mas a macieira não é de pedra. É de madeira velha, e caiu com o peso da idade. Ainda a vejo da janela e irei vê-la, mesmo, quando ela já não estiver.