Rubrica: (Estranhos conhecidos) Os Catulos

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Falar dos Catulos, para mim, é um regresso em absoluto, à minha infância. Todos os Argivaienses sabem quem foram os Catulos. As pessoas mais velhas lembram-se, eu lembro-me bem e acredito que os mais novos, também venham a ouvir falar deles, se é que já não ouviram.

Os Catulos eram na realidade dois irmãos (Manuel e José) que após a morte dos seus pais, passaram a viver sozinhos, na casa onde se encontra a Junta de Freguesia. Dois irmãos que tiveram de aprender a lidar com as duras agruras, que a vida e o seu destino lhes traçou. Num lugar ermo (lugar dos caçapos), estes irmãos eram das poucas pessoas que aí viviam. Outros tempos, em que a escuridão dos caminhos, a enormidade dos terrenos de lavoura, tornava este lugar particularmente solitário. O facto de o pai, ter sido assassinado violentamente, junto à porta de casa e os irmãos terem
assistido, terá sido extremamente marcante e doloroso para os dois irmãos, afectando-os indubitavelmente, para sempre.

Entre pobreza e solidão, a vida seguiu o seu rumo. Recordo-me de um deles, do José. Recordo-me porque a casa deles, ficava mesmo em frente à Escola Primária. onde andei. Era comum, os miúdos atirarem pedras para a porta, para os irritar, ou simplesmente chamar pelo nome com que ficaram conhecidos. Era José quem vinha cá fora, respondendo aos gritos dos miúdos. Com as socas barulhentas a bater no chão, corria atrás de todos, como se fosse jogar à apanhada. A gritaria era geral, uns a correr para um lado, outros a correr para o outro, entre risadas e gargalhadas. José não gostava propriamente que o incomodassem mas lembro-me, por vezes, de ver um sorriso no seu rosto. Eu vía tudo de longe, porque me refugiava, dentro do portão de ferro, da escola. Tinha medo, tive sempre a ideia que ele era muito alto, quando na realidade, eu é que era pequena. Mesmo assim, atrás do portão, ele conseguia tirar-me a lancheira só para me chatear, mas
eu não corria atrás dele, como os outros miúdos. Deixava-me estar quieta, pois, sabia que ele no fim da correria, voltaria a entregar-me a lancheira.
Ele era pacífico e não fazia mal a ninguém. Se calhar, bem lá, no fundo, até gostaria de correr connosco, talvez o seu lado criança, ali se libertasse e ainda que, por minutos, livre das amarras da vida, fosse verdadeiramente feliz.

Não sei, nunca lhe perguntei. Em toda a sua simplicidade e inúmeras dificuldades, com que atravessaram a vida, partiram. Primeiro o José e mais tarde o Manuel Francisco Lopes, de quem existe uma rua, na freguesia. A bem de ser tratado até à morte, o que foi cumprido, o último irmão (Catulo) foi benemérito da freguesia. Deixou a casa, a qual, após os restauros necessários, tornou-se a sede da Junta de Freguesia, muito antes, da reorganização administrativa das freguesias.

Os Catulos fazem parte de uma memória colectiva e não serão esquecidos.

Sofia Teixeira