Na eucaristia dos fitados de Coimbra, em 1996, D. António Marcelino na sua homilia pede aos milhares de jovens que se amontoavam no adro da Sé Nova de Coimbra que se recordassem sempre que “o ideal é maior que a vida”. Essas palavras têm-me acompanhado ao longo dos anos, nem sempre compreendidas ou sequer observadas, mas recorrentemente reflito sobre esta mensagem.
Esta semana é uma semana marcante para milhares de jovens de todo o mundo que estão a viver intensamente as Jornadas Mundiais da Juventude (JMJ) em Lisboa. Os jovens que recorrentemente são acusados de falta de ideais, geração perdida ou vivendo realidades virtuais através dos écrans dos telemóveis e das redes sociais, abdicaram do seu conforto e puseram-se a caminho da JMJ. Estes eventos de grande impacto e de forte comunhão, incorporando diferentes culturas, línguas e formas de pensar a vida são relevantes na formação do carácter dos jovens e muitos descobrem que na realidade o ideal é maior que a vida. Ainda que possa ser incompreendida pelas gerações mais velhas, esta geração de jovens dá um exemplo de humanidade assinalável. Na JMJ não há raças, não há géneros, não há pobres, não há ricos, não há preconceitos, não há o outro ou a outra, há o nós. É por isso que o ideal é maior que a vida, ou como Platão defendia, todo o conhecimento e todas as relações existem na sua forma ideal que é a verdadeira.
Invariavelmente e felizmente, há quem discorde e seja contrário às JMJ. Os argumentos são diversos, mas podem ser sintetizados em razões financeiras, razões do estado de direito e razões morais.
Sobre as razões financeiras, defendem os adversários das JMJ que o país está a despender desnecessariamente recursos financeiros. Para além do investimento em obras, os recursos humanos e materiais mobilizados são significativos e, naturalmente, há uma fatura a pagar. Acresce, dizem os críticos, que a organização da JMJ não paga impostos, pelo que todos os montantes recebidos pela organização da JMJ não têm contrapartida para o Estado Português. Efetivamente, a Fundação JMJ – Lisboa 2023, a entidade que organiza a JMJ em Portugal, é uma Fundação com personalidade jurídica-canónica e civil e está isenta de impostos, ao abrigo do Despacho n.º 3853/04, de 19 de fevereiro de 2019. Discordo daqueles que referem que a JMJ vai gerar um retorno significativo para o país do ponto de vista financeiro, através do consumo, tendo sido uma das personalidades mais importantes que usou esta argumentação, o senhor Presidente da Câmara Municipal de Lisboa. Basta atendermos que estes movimentos de jovens são essencialmente focados em estadias nas paróquias e escolas, com bastante frugalidade nos gastos de cada jovem. Carlos Moedas referia que se cada peregrino gastasse 40 euros por dia durante as jornadas que o retorno financeiro do país seria significativo. Tenho dificuldade em acompanhar esse raciocínio, não só porque os jovens não vão gastar 40 euros por dia em Lisboa, como o retorno desses gastos para o país seria muito inferior aos 40 milhões de euros diários da matemática simples utilizada. Pessoalmente, concordo que é um investimento financeiro significativo que Portugal está a fazer para um evento localizado em Lisboa. Ainda assim, estou muito contente que o país mobilize recursos para as JMJ, pois são de uma importância incomensurável para a vida de cada um dos jovens participantes, para as suas famílias e para todos os que assistem nas redes sociais e nos meios de comunicação social. E são muitos milhões de pessoas. Em todo o mundo. E o retorno intangível que o país retira com as JMJ será visível em muitos anos que virão.
Sobre as razões de estado de direito, invoca-se que o estado é laico e como tal se deve de abster de apoiar, promover e participar em eventos religiosos. Se analisarmos a lei fundamental Portuguesa, isto é, a Constituição da República Portuguesa, não encontramos em nenhum artigo (dos 296) em que seja referido que o Estado Português é laico. Ainda que não esteja na letra da nossa Constituição, é justo e equilibrado que o estado seja laico nas suas relações, isto é, que não privilegie uma religião em detrimento de outras, ou, mais grave ainda, que não obrigue a uma religião única, proibindo todas as outras. Não creio que essa laicidade seja impeditiva de apoiar eventos religiosos (como outros eventos de multidões que são apoiados), pelo contrário, o Estado Português tem a obrigação de atender à multiculturalidade da sociedade portuguesa, seja esta religiosa ou laica. Os eventos (religiosos ou não) variam de dimensão e, consequentemente, de apoios estatais. E a JMJ em Lisboa é um evento de dimensão nunca vista no país, pelo que requer apoios mais significativos que outros eventos de menor dimensão.
Sobre as razões morais não me vou deter muito. A fogosidade com que muitos defendem o direito das minorias é a mesma, ou até mais exacerbada, com que procuram desprezar e denegrir, de forma chistosa, uma maioria silenciosa que procura seguir os seus ideais, na partilha e manifestação da sua fé com alegria. Assisto a muitos comentários televisivos que evidenciam esse sentimento moral de superioridade e inquieto-me, pois não consigo compreender o motivo que não seja a gratuitidade de provocar ou agradar quem ouve. É uma espécie de afirmação pessoal pela crítica gratuita da maioria, um estado mental que os psicólogos batizaram de perturbação da oposição, em que os doentes vivem em constante conflito.
Estas JMJ surgem numa fase de degradação acelerada da imagem da igreja católica no mundo. Vítimas de abusos sexuais acusam não só os agressores, padres e outras pessoas ao serviço da Igreja, como a própria Igreja que como organização foi incapaz de as proteger. Crimes horríveis que devem levar à justiça todos os agressores ainda vivos e para os quais não bastam pedidos de desculpa. É necessário uma verdadeira limpeza de balneário que Jorge Bergoglio, Papa Francisco, já iniciou.
Será este contexto adverso para a igreja católica um impedimento ao sucesso das JMJ? Não creio. Considero que o sucesso das JMJ será tanto maior quanto a transformação que pode ser gerada na vida dos jovens que nela participam. Do seu envolvimento futuro na sociedade, do seu exemplo de vida e na dedicação e empenho que possam pôr em tudo o que fizerem, da multiplicação dos afetos e da humanidade vivida nesta semana, pelo resto das suas vidas. Para esses líderes do amanhã, espero que recordem que o ideal é maior que a vida.
Opinião Edgar Torrão – ‘O contador de areia’