O mundo está mais perigoso

0
958

O basco Daniel Innerarity, Director do Instituto de Gobernanza Democratica juntamente com o alemão Edgar Grande, fundador do Center for Civil Society Research são dos pensadores mais profundos e acutilantes no que concerne à sistematização de riscos globais. E são estes que estão progressivamente a tomar o nosso espaço de convivência social e político, afunilando a percepção colectiva de que o mundo está mais perigoso. Riscos globais são riscos produzidos pelo ser humano, presentes simultaneamente na realidade e no nosso pensamento como antevisões de acontecimentos futuros, que não podem ser calculados, são globais no seu âmbito e ilimitados em grandeza.

Esta percepção de que o mundo está mais perigoso advém da soma de vários eventos que se acumulam e contribuem para a percepção de que a conflitualidade no mundo está em progressão crescente nas nossas vidas. A democracia americana deteriorou-se com um maníaco na presidência, culminando na ocupação do capitólio em Washington, a Europa está em guerra, com a ocupação de territórios ucranianos por parte da Federação Russa, os indicadores de fome, sobretudo em África e na América Latina disparam, as operações militares no médio oriente continuam de grande monta, o manto medieval volta a cobrir o Afeganistão e recentemente, recrudesce o conflito nos mares do sul da China, em volta de Taiwan. A tudo isto, acresce um aumento evidente do investimento em despesas militares a uma escala só comparável com o período da guerra fria. Como nos ensina Graham T. Allison, estamos perante uma época que incorpora a muito estudada armadilha de Tucídides que postula que quando um império em ascensão enfrenta um império dominante, um conflito de efeitos imprevisíveis e potencialmente devastadores é iminente. O império dominante desde os finais da II Guerra Mundial é os EUA e o império em ascensão é, como sabemos, a China.

Do relatório da NATO 2030: Unidos para uma Nova Era, retiramos este esclarecedor texto que sintetiza a forma como o ocidente encara a China: “Neste contexto, a China deve ser vista como “um rival sistémico de espectro total, em vez de um ator puramente económico ou um único ator de segurança centrado na Ásia” que “está a expandir o seu alcance militar para o Atlântico, Mediterrâneo e Ártico, aprofundando os laços de defesa com a Rússia, e desenvolvendo mísseis de longo alcance e aeronaves, porta-aviões, e submarinos de ataque nuclear com alcance global, amplas capacidades espaciais, e um arsenal nuclear maior”.

O crescimento da China ao longo das últimas décadas é uma evidência e a sua influência geoestratégica incontornável mas quanto a mim há um momento que desperta o ocidente para essa ascensão: a Iniciativa Faixa e Rota (doravante BRI ).

A BRI tem pouco mais de 8 anos, desde o seu anúncio pelo Presidente da República Popular da China Xi Jinping, em outono de 2013, no Cazaquistão. No primeiro Belt and Road Forum for Cooperation, Xi Jinping estabeleceu as linhas mestras desta ambiciosa iniciativa chinesa de conectar a Ásia com a Europa e África, através de uma rede de infrastruturas, terrestres e marítimas, ao longo (e para além) das milenares rotas da seda. Na sua alocução, é pertinente sublinhar que Xi inicia a mesma referindo-se aos riscos que o mundo enfrenta, investimentos e transações comerciais débeis, globalização económica oscilante, crescente desenvolvimento desequilibrado, impacto em larga escala das migrações, refugiados e emigrantes, bem como guerras, conflitos e terrorismo. Respaldado nos riscos globais que os países enfrentam, e para os quais uma resposta individual será sempre limitada, Xi aponta para a interdependência das nações e para a necessidade de alinhar políticas e integrar recursos numa escala global para promoção da paz mundial, estabilidade e desenvolvimento partilhado. A China estabeleceu para a BRI um modelo aberto de relações multilaterais, pelo que não surpreende a crescente contabilização de países que aderem à iniciativa e que estabelecem intenções ou efectivam projectos no seu âmbito. Pelas pesquisas efectuadas, identifiquei cento e quarenta países aderentes à BRI, representando cerca de 39% do PIB mundial e cuja população total ascende a 4.6 mil milhões de pessoas.

Considerando a diversidade geográfica, étnica e cultural da BRI, há uma coexistência de diversos regimes políticos, desde a ditaduras militares, como por exemplo a do Myanmar, a regimes democráticos parlamentares europeus. Um foco de tensão permanente que advém desta diversidade são os direitos humanos, nomeadamente na avaliação regional e nacional da efetivação dos direitos civis e políticos e nos direitos económicos, sociais e culturais. Não devemos cair na armadilha de considerar que este foco de tensão é de natureza genérica e de difícil concretização de eventos que possam derivar em conflitos nacionais, regionais ou mesmo de natureza global. Parece-nos evidente que há países ao longo dos diferentes corredores da BRI que são predispostos a conflitos recorrentes e que consomem recursos da comunidade internacional, quer na sua mediação, quer na estabilização territorial e defesa das suas populações. Estes conflitos são de diversa natureza, confrontos étnicos, acesso a água, disputas de fronteiras históricas, motivos religiosos, entre outros.

Na realidade a BRI é uma extraordinária projecção estratégica da China quanto à sua capacidade diplomática e força financeira em estender todo o seu império para além das suas fronteiras. Sublinho duas características que fazem parte desta impressão digital da China nas suas incursões actuais pelo mundo, recorrendo ao seu poder financeiro e diplomático (e como sabemos, suportado em termos securitários pelo seu poder militar).

O investimento que a China persegue concentra-se maioritariamente nas áreas da energia, dos transportes, dos metais e na área financeira.

Cerca de 40% dos investimentos externos da China que impliquem construção concentram-se na área da energia, seguindo-se a área dos transportes, a qual inclui aeroportos, portos, ferrovia e logística, e a dos metais. Nota-se nesta estratégia chinesa uma clara preferência por bens estratégicos e da qual os países dependem – a energia, para o geral funcionamento económico e social e as redes de transporte, essenciais para a circulação de bens e de pessoas. O sector dos metais é de extrema importância para todo o suporte industrial necessário, sem esquecer o sector tecnológico, o qual depende de metais raros, desde telemóveis, painéis solares a satélites. Se atentarmos aos principais países onde a China investe por tipologia de energias (fósseis ou renováveis), verifica-se um forte investimento no Iraque quer no petróleo, quer na energia solar, na Indonésia e no Paquistão, com energia hídrica e no Vietname com energia solar. Atendendo ao presente conflito russo-ucraniano, é também relevante anotar os investimentos da China na Rússia na área do gás. Quem quiser explorar um pouco mais esta temática, sugiro pesquisar o papel da China na República Democrática do Congo, por exemplo, a importância das minas de Tenke Fungurume, cuja extensão territorial equivale a cerca de dois terços da área metropolitana do Porto.

A extensão territorial dos investimentos que a China está a desenvolver ou já tem em exploração, tem um efeito pervasivo, não só nas relações diplomáticas entre países, como também, no próprio tecido social, concretamente, nas pessoas. As diferentes comunidades chinesas que se foram instalando, energizadas por estes investimentos, nos diferentes países, levam a tensões sociais, as quais, não raras as vezes, derivam em reacções populistas extremistas anti-imigração e à ascensão de partidos populistas no espaço democrático. Explorando discursos de ódio contra determinadas etnias, emerge a pressão nos governos para a implementação de políticas públicas securitárias, as quais têm como efeito colateral o aumento do sentimento de insegurança, sendo terreno fértil para se semear sementes de ódio, conflito e confronto.

A armadilha da dívida

Estima-se que o investimento total chinês na BRI ascenderá a mais de mil biliões de dólares o que equivale, a valores correntes, a oito Planos Marshal. Num cenário de incerteza introduzida pelos efeitos da pandemia por Covid-19 na vida social e económica, com os efeitos profundamente negativos nas cadeias de valor assistindo-se a disrupções significativas em diversas indústrias, há cada vez mais países e instituições internacionais inquietas sobre a sustentabilidade da dívida que suporta os investimentos na BRI. A maioria dos investimentos na BRI, patrocinados ou liderados pela China, estão alavancados em dívida privada e pública. Os dois principais bancos públicos chineses envolvidos nas montagens financeiras e de financiamento de projectos na BRI são o China Development Bank e o Export-Import Bank of China.

Já em 2018 (pre-covid), o Laos acumulava investimentos chineses que correspondiam a 117% do seu PIB, bem como a Mongólia (30% do PIB), o Camboja (40%) e o Paquistão (15% do PIB). De acordo com um estudo da Harvard Business Review, o Djibouti, Tonga, Maldivas, República Democrática do Congo, Quirguistão, Camboja, Níger, Laos, Zâmbia, Samoa, Vanuatu e a Mongólia já devem mais do que 20% do seu PIB à China. Deste estudo, um dado ainda mais revelador da dependência crescente que os países têm da China em termos de financiamento, e porventura perturbador, é o facto de que cerca de 50% dos empréstimos que a China faz a países em vias desenvolvimento, não são reportados, ou seja, o stock dessa dívida não é divulgado nos dados publicados pelo FMI, Banco Mundial ou mesmo as companhias de rating. A análise revelou que até 2016, cerca de 200.000 milhões de dólares de empréstimos da China não eram reportados às instâncias internacionais.

O Paquistão, por exemplo, recorreu a um bailout do FMI em 2019 de 6 mil milhões de dólares, na sequência do qual, implementou medidas muito duras para a sua população com significativa contestação (greves, protestos na rua, violência civil). A confirmar este contexto, em Março de 2022, o Presidente do Sri Lanka, Gotabaya Rajapaksa, anunciava que o país necessitava de ajuda financeira internacional, sem a qual entraria em credit default já em Julho de 2022, quando teria de pagar mil milhões de dólares de um empréstimo obrigacionista soberano. Como sabemos, Gotabaya Rajapaksa fugiu do país e o Sri Lanka é neste momento um país em convulsão social. Quem pretender perceber os motivos de tal convulsão, é só olhar para a lista de investimentos significativos feitos no âmbito da iniciativa BRI (e recorrendo a empresas chinesas) e ao efeito na dívida pública do país. O aumento da dependência da dívida chinesa por parte de muitos países, sobretudo do Médio Oriente e África, nomeadamente pelas responsabilidades financeiras assumidas por esses países face aos investimentos, absorve recursos financeiros e tem como contra face a necessidade de aumentar receitas fiscais através de impostos ou através da venda de mais recursos estratégicos à credora (China). Nestas circunstâncias, verifica-se a degradação da capacidade social perante os cidadãos, crescendo o descontentamento social e movimentos sociais de contestação. O possível efeito dominó que esta armadilha da dívida tem para com a economia mundial é de efeitos potencialmente devastadores e de consequências de grande complexidade geopolítica, diplomática e militar.

Concluo com uma preocupação que me assalta. Nesta crescente conflitualidade e considerando as áreas estratégicas de Portugal nas mãos de investimento chinês (energia, indústria, construção, etc.), que equilíbrios diplomáticos serão necessários para manter a visão atlantista de Portugal?