Tenho 23 anos. Sempre que falo com quem viveu Portugal antes da revolução, parece-me sempre que falam de um outro país qualquer. O meu pai fala-me da pobreza abjeta de um bairro esquecido pelo Estado Novo. Fala-me das ruas escuras, da terra batida por todo o lado, das casas remediadas, dos pés descalços, da comida racionada, dos banhos de água gelada numa bacia do jardim, da roupa de domingo, dos farrapos da semana, dos irmãos que sonhavam fugir de Portugal, das irmãs “com a rédea bem curta”, do hospital “ali ao lado” mas que era só para quem podia e de uma infância onde pouco tempo teve para ser criança. Mas sempre com o remate final de que “havia outros que viviam bem pior”.
Afinal, havia quem não tivesse a roupa de domingo. Outros entravam na sala de aula com banho há dias por tomar. Outros tantos que nem à escola iam, porque “se o meu pai não precisa de saber escrever eu também não preciso”. Muitos com sapato praticamente sem sola e de estômagos vazios até ao jantar. Outros enfiados num navio para combater uma guerra lunática num pedaço de terra a que chamávamos de colónia há demasiado tempo. A minha bisavó, funcionária de uma escola primária e ainda viva, fala-me dos “pobres miúdos” como se já não tivessem crescido. Esses miúdos, que entravam na escola sem pequeno almoço tomado e de roupas sujas. “Havia dias em que dava-lhes banho no tanque da escola logo pela manhã e tantas madrugadas passei a embrulhar sardinhas e pedaços de papo seco em jornal, para terem o que comer de manhã”. Fala deles como se ainda ali estivessem, presos no tempo, à espera de serem cuidados por quem não tinha obrigação nenhuma de cuidar deles. “Era assim em todo o lado”, repete sempre.
Era assim em todo o lado, com muita gente e havia sempre quem vivesse bem pior. Passei a minha infância a ouvir isto repetidamente e talvez por isso tenha uma dificuldade muito grande em compreender esta ideia de que “as gerações mais novas não dão muito valor ao 25 de Abril porque já está demasiado distante”. Quando somos de facto provas vivas do quão próximo realmente ainda está.
É porque o 25 de Abril não é essa coisa lá ao longe, velharia numa prateleira cheia de outros tantos dias para contar, porque o esforço desse dia esteve longe de terminar às 17:45 com uma rendição no Quartel do Carmo. O esforço persistiu. O esforço fez com que a minha avó não visse os filhos servirem de carne para canhão por uma guerra imoral e deu-lhe o direito a envelhecer com dignidade. O esforço arrumou com a doutrinação e deu uma educação aos meus pais. O esforço acabou com os banhos de água gelada numa bacia do jardim. O esforço alcatroou, iluminou e saneou as ruas de um bairro há muito esquecido. O esforço vestiu quem passava frio e calçou quem não tinha outra escolha senão andar descalço. O esforço fez com que o hospital, que sempre esteve ali tão perto, deixasse de estar tão distante porque a saúde deixou de ser para alguns e passou a ser um direito de todos. O esforço tirou da cabeça do meu pai a ideia bafienta vigente de que a pobreza em que tinha nascido era uma virtude, uma inevitabilidade digna de romantização e deu-lhe capacidade de ambicionar mais. O esforço tirou a minha família do sótão sobrelotado de uma mercearia que servia de casa e sustento, num bairro onde a pobreza era herança garantida. O esforço deu a primeira geração de licenciados à família e deu-me uma infância onde tive aquilo que até há poucas décadas era considerado um luxo: tempo para ser criança. Costuma-se dizer que a maior conquista da revolução foi ter mudado o regime, mas fez algo bem maior que isso: foi pilar essencial para mudar o rumo de imensas famílias e assim realmente mudar o país.
O que foi feito numa geração pode muito bem ser replicado pelas seguintes, por muito que as coisas pareçam atualmente paradas. Mas o esforço ainda persiste. Pode até haver quem o queira afastar, o venda como distante ou o sinta como insuficiente. Gente interessada em que não tenhamos orgulho daquilo que fomos capazes de construir nas últimas décadas. Mas há em quase todas as famílias provas inegáveis dessa mudança e a quem as renega temos apenas de mostrar que o passado pelo qual estão nostálgicos, muitos deles nem o viveram, não é nada comparado com o futuro que podemos construir. Fazem por isso sentido as palavras de Ramalho Eanes há uns dias, de que “é muito importante que façam uma reflexão sobre aquilo que se conseguiu… mas acho que é mais importante ainda fazerem uma reflexão daquilo que querem que venha a ser o país”. É que tal como o passado não se fez num dia, o futuro também não.
A maior contradição da democracia é que quanto mais cumpre, mais lhe é exigida. Mas numa altura em que tudo é colocado em questão, eu e a minha geração somos prova viva de que a democracia cumpriu, continua a cumprir e irá certamente cumprir ainda mais.