Depois de quatro anos, o mandato do Comandante Marques Coelho chega ao fim. Como capitão de porto da Póvoa de Varzim e Vila do Conde, diz não se arrepender de nenhuma decisão e levar consigo “gratidão” e “orgulho”. Na terra em que “somos acarinhados quando cá chegamos”, deixa uma sensação de objetivo cumprido, mas admite que “o trabalho não acaba”.
Quatro anos à frente das capitanias da Póvoa de Varzim e de Vila do Conde. Qual o balanço?
Superaram as expetativas. Foram quatro anos de grandes momentos de realização profissional e pessoal, numa realidade que, para nós oficiais de Marinha, é muito diferente daquela a que estamos habituados. São muitos conceitos, muitos princípios que são novos e que são precisos assimilar. O primeiro ano é muito difícil, de grande esforço. Os outros já são de maior normalidade. Acima de tudo, é uma experiência para a vida, muito gratificante, de trabalho realizado, de serviço público prestado. Todos os dias há resultado daquilo que nós fazemos, o que é, sem dúvida, muito gratificante.
Existe algum um momento que o marcou e sensibilizou durante este tempo?
Sim. As tragédias, os acidentes marítimos. São momentos de muita ansiedade e de muito stress. Tivemos, infelizmente, algumas tragédias com mortes, e isso é mesmo uma situação bastante difícil de viver. Por nós, por aquilo que nos é exigido para evitar que os acidentes aconteçam e pelo drama que as pessoas sofrem, os familiares.
Pelo lado positivo, também há bastantes. O dia da Marinha é um desses exemplos. Foram momentos muito felizes de celebração dos 700 anos da Marinha, de uma aproximação muito grande à comunidade.
Gerir duas capitanias e uma costa com várias dezenas de quilómetros foi difícil? Há diferenças entre as duas capitanias?
Sim. Há diferenças nas duas comunidades, na forma de trabalhar, de viver. Embora sejam muito semelhantes, claro que há diferenças. Dada a proximidade, na minha opinião, é mais fácil serem as duas capitanias juntas, com o mesmo capitão de porto, do que duas capitanias distintas. Nós encaramos isto como uma área portuária que vem desde o rio Ave até ao Molhe Norte da Póvoa de Varzim. Nessa perspetiva, a comunidade piscatória é única. Embora as pessoas vivam aqui ou ali, é uma comunidade com características próprias. No resto da interação dentro dos dois concelhos vêem-se algumas diferenças, mas são fáceis de encaixar. Embora as pessoas digam o contrário, há muita proximidade.
A área, felizmente, não tem arribas, que é uma preocupação na orla marítima, mas tem muita zona rochosa, onde tivemos vários encalhes, o que é preocupante. E tem muito areal, muitas praias agradáveis, mas que, infelizmente, não podem ser todas vigiadas. Algumas não são concessionadas, e nessas tentamos colocar a vigilância motorizada durante o verão.
É um areal muito extenso, e o mar é traiçoeiro, às vezes. No verão, deixa-nos muito preocupados. Um verão com mar chão é relativamente fácil de controlar, mas, assim que a ondulação sobre um bocadinho é uma dor de cabeça muito grande, porque o risco é enorme. As praias têm areia grossa, que é uma areia difícil para as pessoas se moverem, isto associado a uma ondulação forte e o declive acentuado de alguns areais, estão reunidos os ingredientes para que aconteçam tragédias, como já aconteceram, e outras que conseguimos evitar.
Mas requer muita atenção permanente, disponibilidade e muito cuidado, e também uma grande cooperação entre entidades. Isto só se consegue se todos trabalharmos em equipa. Desde capitanias, Câmara Municipal, polícia, GNR, Agência Portuguesa do Ambiente, Associação de Concessionários, nadadores salvadores, pescadores, náutica de recreio… Temos de trabalhar todos com o mesmo objetivo, e normalmente, é isso que acontece. Acima de tudo, a segurança.
O que foi mais complicado de administrar, a época balnear e a vigia da costa ou a ligação à comunidade piscatória? Eles enquadram-se um no outro?
Não se enquadram, mas às vezes sobrepõem-se. Nós dividimos a nossa atividade entre o verão e o inverno, essencialmente. No inverno, a nossa preocupação principal são as embarcações no mar, seja de recreio ou pesca. As barras, principalmente, entradas e saídas de barras, abrir e fechar a barra: isso é aquilo que nos preocupa o inverno inteiro. A resposta imediata ao salvamento marítimo, o aumento à prontidão das estações, os avisos de mau tempo; o nosso inverno é feito à volta disto.
A partir de março, começamos a preparar a época balnear. Há o processo administrativo, a adaptação à legislação, reuniões com as entidades todas. A vigilância das praias começa mais ou menos em abril, com o projeto Água Vida. É um projeto promovido com as câmaras municipais em colaboração com a Associação de Nadadores Salvadores e que, até junho, nos dias de maior afluência, com bom tempo, garante que há um conjunto de nadadores salvadores que patrulham as praias, fazem alguma vigilância e prestam auxílio se for necessário.
A partir de maio, este dispositivo é reforçado e depois é sempre gradual. É reforçado pelos militares da Marinha, que são destacados para as capitanias com as viaturas a mar alto na vigilância motorizada e que fazem de maio a outubro. Depois, de 1 a 15 de junho, no início da época balnear, começam as concessões a garantir o dispositivo, de forma gradual. No final do verão, o inverso. Vai-se diminuindo a presença dos nadadores salvadores e da vigilância, até que chegamos a outubro e acaba.
No meio disto tudo, temos o processo administrativo da pesca, que é um bocado em função das autorizações, das quotas para pescar. Há atividades interditas ou espécies que estão interditas. O ritmo da pesca nos últimos anos tem sido um bocadinho em função disto, se há ou não interdições. No verão, a segurança da pesca é menos preocupante. Com o mar calmo, o risco é menor, embora os acidentes também aconteçam, obviamente.
Mas, resumindo, no inverno é [a preocupação é] segurança no mar e no verão é segurança nas praias.
Trabalhou com as associações sobre o desassoreamento dos portos da Póvoa e de Vila do Conde. Este é um processo que um dia poderá ser resolvido em definitivo?
O assoreamento é um fenómeno natural associado às estruturas portuárias que existem. Há portos onde o assoreamento é menos significativo e noutros, Póvoa de Varzim e Vila do Conde em particular, em que o assoreamento é recorrente e muito rápido. Isto requer, desejavelmente, umas dragagens anuais aos dois portos. As dragagens são processos muito caros, o processo administrativo da contratação de dragagens é demorado e, nas condições atuais, se por algum motivo não conseguirmos garantir esta sequência anual, as condições degradam-se. Nós depois temos de trabalhar com as condições que existem. Se o porto estiver dragado com mais frequência, águas mais profundas é mais seguro; se estiver menos dragagens, aumenta o risco de acidente. Nós vamos trabalhando com isto. A solução a curto prazo: eventuais formas de mitigar este risco, eliminar, eventualmente, implicaria obras estruturais portuárias profundas.
A forma mais simples tem sido resolver isto através das dragagens, embora estejam em cima da mesa opções de forma a rentabilizar este processo das dragagens, torná-lo mais flexível e, também, menos dispendioso. Esta não é uma responsabilidade da capitania, da capitania é a preocupação pela segurança. Claro que também, quando é necessário, fazemos alertas para aquilo que consideramos ser um risco acima do normal. O processo é conduzido pela DGRM [Direcção-Geral de Recursos Naturais, Segurança e Serviços Marítimos] e a capitania dá todo o apoio que é necessário nesses processos.
Como foi a gestão quando teve que decidir pelo fecho das barras devido à ondulação e assoreamento, enquanto os pescadores pediam condições para trabalharem?
Começo por dizer que a decisão é sempre um equilíbrio entre a necessidade que os pescadores têm de ir para o mar e o risco que correm em entrar e sair. Em momento algum fui pressionado para que a decisão fosse diferente daquilo que é a principal preocupação, que é a segurança. A comunidade piscatória, hoje em dia, mais do que no passado, tem acesso à informação sobre a meteorologia, as condições do mar… conseguem prever. E nós conseguimos, de certa forma, antecipar as situações de mau tempo. A decisão do capitão de porto vem só definir a hora do início e do fecho, porque todos temos a noção se o mar vai melhorar ou piorar. A comunidade já tem acesso à informação.
Hoje em dia, ao contrário do passado, não existe aquela necessidade básica de pescar para comer tão significativa como no passado. Claro que continua a existir, é uma insuficiência, mas, felizmente, existem apoios que compensam a impossibilidade de ir ao mar e que permitem que não se corram riscos tão grandes. Isto também acaba por ser a ação social do Estado, que ajuda a que hajam menos riscos. Não há necessidade de correr riscos porque, de alguma forma, alguma coisa pelo menos está salvaguardada.
Normalmente, aceitamos a opinião dos pescadores mais antigos, mais experientes, ou vemos, muitas vezes, a opinião naquela fase marginal entre o bom e o mau tempo. É sempre importante ouvir a experiência dos mais antigos, e nós também vamos afinando, obviamente.
Isto tem muito a ver com o estávamos a falar antes, o assoreamento do porto, que dita essencialmente se podemos ter mais tempo a barra aberta ou menos. Ou seja, é um conjunto de vários fatores que leva a essa decisão. Mas, hoje em dia, é mais fácil de perceber em conjunto, nós com a comunidade piscatória e a náutica, se estão ou não reunidas as condições. Tem funcionado bem.
Atingiu todos os seus objetivos e conseguiu ter os meios humanos e equipamentos necessários para desenvolver o trabalho?
Ficaram muitos objetivos por concretizar, obviamente. Mas, como comecei por dizer no início da entrevista, sinto-me realizado. Muito trabalho produzido, factual, muita coisa para fazer, obviamente. O trabalho não acaba. Melhorar condições de segurança, incutir cultura de segurança no mar, seja a banhistas, seja à comunidade piscatória, náutica e de recreio, é um trabalho que não tem fim, que todos os dias tentamos melhorar qualquer coisa.
Os meios são sempre escassos, mas permitiram cumprir a missão. Os meios que dispomos, da autoridade marítima, sempre que necessário com o apoio da Câmara Municipal, Proteção Civil, Bombeiros Voluntários, as outras polícias… conseguimos, dentro da comunidade, quando necessário, reforçar a nossa capacidade de resposta. Não só no ambiente marítimo ainda, claro que conjugando com as capitanias vizinhas, os navios da Marinha de maior porte. Isto é um sistema, por isso os meios crescem em função das necessidades e conseguimos sempre dar resposta. Claro que desejava ter mais disponíveis e em permanência, mas sempre que necessários os meios estão cá e disponíveis para nos ajudar.
No seu mandato foram realizadas as celebrações dos 700 anos da Marinha Portuguesa. Como é que sentiu a grandeza desse momento?
Foi com muito orgulho e grande entusiasmo que recebi a notícia que a Marinha estaria a equacionar realizar aqui as cerimónias dos 700 da Marinha, em 2017. Como capitão de porto, receber a Marinha aqui foi um desafio muito grande, deslocar certa de 2000 homens de Lisboa para cá. A capitania deu apoio, quem coordenou foi a marinha. Mas foi um desafio muito interessante. E claro que, depois, a comunidade reagiu de forma inimaginável. A recetividade foi muito positiva, o apoio que a Marinha precisou para fazer esta ação de logística da deslocação para o norte foi infinito. Tudo o que a Marinha pediu, que precisava, daqui e dali, de uma ou outra entidade, foi muito bem acolhido e considero que foi um sucesso. Na minha perspetiva, contribuiu muito para aquilo que é a missão da Marinha, que é a aproximação às comunidades locais. Foi um bom exemplo disso.
Foi a primeira vez que geriu capitanias e portos. Foi uma experiência única?
Desde que fui para a Marinha, sempre tive esta ambição de, um dia, poder ser capitão de porto. Concorri na altura e quando fui convidado para vir para a capitania de Póvoa de Varzim e Vila do Conde, claro que foi um misto de orgulho, apreensão e de receio, porque, efetivamente e como comprovo no fim destes quatro anos, é uma missão de grande responsabilidade e que requer muita disponibilidade.
Nos primeiros tempos, de assimilação, com os receios iniciais, com uma comunidade piscatória muito característica e típica, rapidamente percebi, porque fui muito bem acolhido por todos, que conseguíamos chegar ao fim com o apoio da comunidade. Foi mais fácil. O receio no início era grande, mas à medida que nos fomos envolvendo nos processos, à medida que fomos lidando com as pessoas, fui percebendo isso.
A integração foi fácil. A integração na comunidade, os processos que a capitania tem para lidar, foram fáceis. O que é difícil é ser a primeira experiência como capitão de porto, em que são muitos conceitos novos e muitos procedimentos aos quais não estamos habituados, embora tenhamos uma formação de cerca de 6 meses antes de virmos para cá. O curso de preparação ajuda-nos, mas depois, na prática, os problemas vão surgindo no dia a dia e vamos ter que os resolver. Os primeiros custam mais um bocado, mas depois, lá está, como a integração foi fácil, a evolução foi rápida.
Sentiu-se sempre uma pessoa apoiada?
Sim, sem dúvida. Isso é aquilo que eu mais tenho a agradecer a esta comunidade da Póvoa e Vila do Conde. Nunca me faltou apoio, nunca senti que estava sozinho ou que estava contra qualquer coisa. Estava sempre com alguém ao meu lado, porque a missão é aquela e o objetivo é para ali. Estivemos sempre lado a lado. Às vezes com opiniões divergentes, mas caminhávamos para o mesmo objetivo, e isso é que é importante.
Das decisões tomadas ao longo dos quatro anos, voltaria atrás em alguma delas?
Não, seguramente não. Muitas delas, as decisões são mais urgentes são quase instintivas. O caminho é aquele, dado os factos que existem. Opções estratégicas não estão ao nível da capitania. Nós fazemos mais a execução operacional, resposta às situações que vão surgindo e, nesse contexto, fizemos sempre o mais correto. Não acho que haja qualquer decisão da qual me arrependa ou fizesse de forma diferente.
Os últimos meses do mandato foram caracterizados pela pandemia da Covid-19. O que teve de implementar?
Primeiro, foi a adaptação da própria estrutura interna, mudar as normas de funcionamento da nossa estrutura. Segundo, a nossa resposta à atividade diária da capitania, mas aqui estamos enquadrados naquilo que é a lei geral de funcionamento, a resposta do Estado às medidas de pandemia. O maior desafio deste processo todo foi a preparação da época balnear neste contexto. Foi um desafio muito grande.
Em primeiro lugar, houve uma grande incerteza até aos dias que antecederam a abertura da época balnear, só soubemos mais ou menos as regras uns dias antes de iniciar. Depois, conseguir, juntamente com os concessionários, com as Câmaras Municipais e com os nadadores salvadores, implementar um plano completamente diferente e adaptado em poucos dias foi um desafio grande. Mas foi muito interessante porque, efetivamente, todos percebíamos o que estava em causa. A única dificuldade foi como é que conseguimos. Não foi contrariar, ir contra alguém, estávamos ali a trocar argumentos, porque uns achavam que sim outros achavam que não. A nossa dificuldade foi como conseguir passar para a prática, como conseguir implementar as regras nas praias da Póvoa e de Vila do Conde.
Correu muito bem. Os banhistas também colaboraram, todos estávamos preocupados com o risco de transmissão do vírus, e todos, em conjunto, cumprimos com aquilo que eram as nossas obrigações. As autoridades, os concessionários, os banhistas. Chegamos ao fim da época balnear com aquilo que eu considero ser um resultado positivo face às preocupações que tinha antes de começar. Estava muito apreensivo, mas depois as coisas começaram a fluir e chegamos ao fim aliviados, porque correu bem.
Esta semana deixa o comando e faz a passagem para o seu colega Bruno Teles. Que conselhos tem transmitido ao próximo comandante?
O processo de passagem de serviço é sempre curto, o tempo que temos para passar todo o conhecimento que adquirimos, os concelhos que temos para dar, é uma corrida contra o tempo. As particularidades são enormes, os casos que vamos ter de analisar são muitos. Os conselhos que eu fui dando ao comandante e que procuro dar daqui para a frente é que, essencialmente, isto funciona na perspetiva da colaboração. É isto que temos procurado explorar durante esta passagem de serviço.
Ninguém trabalha sozinho. Os nossos parceiros estão cá e ajudam-nos. A resposta é sempre dada em conjunto. Os desafios são grandes, e o comandante Teles tem mais anos de experiência de Marinha do que eu, o que ajuda bastante. Para este cargo, é preciso ter experiência, ponderação, mas estou certo, do que temos experienciado nestas duas semanas, de que o comandante Teles vai fazer, de certeza, um trabalho de excelência. A comunidade é muito prestável e, assim sendo, o trabalho para nós é mais fácil.
Marques Coelho vai desempenhar outras funções na Marinha e estar mais perto de casa?
Sim, tudo indica que regresse a Lisboa e, em princípio, permanecerei ligado à autoridade marítima, na Direção Geral da Autoridade Marítima. É mais perto de casa.
Sente que criou uma relação de proximidade com a comunidade? Vai manter essa ligação?
A minha família é daqui de perto, de Paredes. Sou natural de Paredes e vivi cá até ingressar na Marinha. Hei de continuar a vir visitar a minha família e, nessas visitas ao Norte, de certeza que farei várias paragens aqui pela Póvoa de Varzim e Vila do Conde.
À semelhança dos anteriores capitães de porto, todos temos criado grandes relações de amizade. É como disse, uma das principais características da cidade é o bom acolhimento que sentimos, somos acarinhados quando cá chegamos, e a comunidade reconhece no capitão de porto a missão que lhe está incutida e colabora. Daqui até às amizades, é num instante. Trabalhamos em conjunto. A comunidade é grande, mas há muitas entidades e muitas pessoas que acabam por trabalhar em conjunto em muitos projetos, e as amizades vão surgindo assim.
Ficam amizades próximas, muitos amigos que vou deixar para trás, e daí a amargura da partida. Mas hei de cá passar. A ligação a esta terra está criada, as raízes estão plantadas, e hei de cá passar muitas vezes para revisitar os amigos que cá ficam e relembrar os bons momentos que cá passei.
Qual o sentimento que descreva estes quatro anos na Póvoa?
Em duas ou três palavras, posso dizer que, acima de tudo, é, por um lado a gratidão pela experiência e, por outro, o orgulho que foi desempenhar estas funções. Acho que são estas as palavras que caracterizam.
Sente-se uma pessoa ainda mais feliz agora?
Sim, bastante mais feliz. Realizado. Sinto que todo o esforço valeu a pena.