O país das incompatibilidades

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Neste espaço de opinião, já por algumas vezes comecei por escrever um texto que depois rasurei. Não porque achasse errado, não porque não estivesse seguro dos meus argumentos, mas porque baixava os braços perante a suposta necessidade de reforçar o argumento perante os intelectuais inimputáveis.

Isto, a respeito de algo que acredito ser fundamental para a transformação da sociedade portuguesa. Passar do princípio da desconfiança para o princípio da cooperação. Concretizando, ao invés de quando se legisla a preocupação ser moldada em função do que os chico-espertos vão fazer ou pensar para tirar partido ou vantagem, o foco passar a ser a solução mais consistente com o fim que se pretende. Por exemplo, as vergonhosas coimas em matéria de passagem em SCUT’s.

Outro exemplo, quando alguém apresenta um projeto num município, a primeira atitude do município deveria ser contatar o interessado para que este e os seus consultores reunissem com o município no sentido de potenciar o projeto, indo ao encontro das vontades do interessado e dos desígnios dos municípios. Ao invés, o município envia notificações de difícil descodificação e o interessado tenta insistir no seu caminho (não raras vezes) porque o vizinho também fez, ou o amigo do x também conseguiu. Nesta conversa de surdos, perdem-se oportunidades de potenciar projetos e criar valor para as populações.

E daqui, fazendo a ponte para a discussão das últimas semanas, a respeito das incompatibilidades onde partilho o meu exemplo.

Sempre disse que nunca estaria disposto a abandonar a minha profissão de advogado, nem a minha iniciativa empreendedora pessoal, e, nessa medida, estaria disponível para a política em part-time. Correndo o risco de estar errado, julgo que o melhor contributo possível é poder contribuir para uma comunidade, enquanto se vivencia os problemas da mesma (trabalhando ou tendo o seu negócio, como o cidadão comum).

Há alguns anos tive um muito honroso convite para adjunto de um dos maiores municípios do País. Tive de recusar, porque a alínea a), do nº2, do artigo 82 do Estatuo da Ordem dos Advogados assim o proíbe. Não poderia a meio-tempo assessorar e orientar estrategicamente determinadas temáticas porque o estatuto da minha profissão o considera incompatível. De igual modo, nunca poderei a meio-tempo exercer uma função ativa de mudança num município (ex: vereador) porque o mesmo artigo o proíbe. Mas, esse mesmo artigo que proíbe, escancara a porta relativamente aos deputados da Assembleia da República e afins, no seu número 2, alínea a).

Admito que os leitores mais atentos do Correio da Manhã ou do Jornal de Notícias digam: “Pois, esses que estão na Assembleia só olham para o umbigo deles. Era proibir também!”. Mas não, o problema não é proibir. O problema é não confiar. O problema é partir do princípio de que as pessoas em exercícios de funções públicas não podem ter uma vida normal.

O problema é achar que os políticos ou representantes públicos têm de cair do céu, dotados de capacidade, qualidades, mas ao mesmo tempo sem nenhuma experiência anterior que possa minimamente beliscar qualquer hipótese de hipotético favorecimento.

Para mim, tais limitações são ainda mais esdrúxulas quando o nosso Código Penal (e bem) já prevê uma panóplia larga de crime cometidos no exercício de funções, ou seja, existem mecanismos de controlo e sanção para potenciais abusos.

O problema é que esta mentalidade não é virgem, nem se resume aos mais radicais. Foi possível encontrar parte desta fúria de puritanismo dentro de uma ala do partido socialista, nomeadamente, da ala Pedro Nuno Santos.

Independentemente do que diga a lei das incompatibilidades, é absolutamente ridículo que se esteja a discutir uma pessoa que tem uma participação de 0.5% e que fez um ajuste direto que não chega a 20.000€. Recordando também que após o esbulho fiscal que o próprio Pedro Nuno sufraga e defende, a quantia líquida andará muito distante deste valor.

Mas a verdade é que o caso Pedro Nuno é o verdadeiro efeito karma. Alguém que povoou ministérios e prestadores públicos com pessoas afetas à sua ideologia (que é mais próxima do BE do que do PS), ver-se agora sob a possibilidade de perda do cargo, por um contrato de um montante que não aquece, nem arrefece o próprio, nem o seu pai.

Mas é precisamente esta conversa do favorecimento que Pedro Nuno, André Ventura, Catarina Martins e outros fazem dela o seu elixir político que acaba por transformar o país cada vez num espaço mais pequeno, e onde cada vez existe menor vontade de abraçar a causa pública.

É preciso confiar nas pessoas e pensar os problemas sobre a perspetiva da criação de valor e não sobre o que uma ruidosa e mesquinha parte vai pensar. No final do dia, somos um país pequeno, com uma população pequena que necessita de união e visão para sair deste estado de empobrecimento generalizado. Para isso, precisamos do contributo do maior número de pessoas, mas também das mais válidas. Se por acaso existirem abusos, temos a obrigação de confiar no trabalho dos órgãos judiciais para equilibrar o sistema, aplicando a lei.

Num país tão pequeno, e com uma população cada vez mais minguante, é preciso passar da incompatibilidade para a cooperação. E isso, é o trabalho de cada um de nós.