O Aqueduto de fios de ouro

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O Aqueduto é para os peregrinos a caminho de Santiago de Compostela como um fio de Ariadne. Várias foram as vezes em que me cruzei (antes da pandemia) com alguns dos caminhantes perdidos num intrincado labirinto de pedras, muros e caminhos. O Monumento Nacional que o é, desde o Decreto Lei de 16 de junho de 1910, per-corre o caminho desde o Convento de Santa Clara em Vila do Conde até Terroso e atravessa algumas freguesias como Argivai. Os anos passam, a vida segue, as pessoas morrem, emigram, regressam às suas raízes, as crianças nascem e crescem. O ciclo da vida continua, e o Aqueduto atento e vigilante está sempre ao nosso redor.Por vezes, a antiguidade do aqueduto ainda é, erradamente associada aos Romanos!A sua história, porém, é bem mais recente, não deixando, no entanto, de ser apaixonante.E para falar do Aqueduto temos de falar impreterivelmente do Convento que foi mandado edificar em 1318 por D. Afonso Sanches (filho bastardo de D. Dinis) e por sua esposa D. Teresa de Menezes. O Convento de Santa Clara em si, apesar das inúmeras alterações que sofreu ao longo dos séculos, está identificado como Gótico português a Norte do Douro e foi edificado no local onde se pensa ter existido o castelo dos Condes de Cantanhede. Logo cedo foi perceptível para a comunidade monacal que tinham de encontrar uma solução para a questão do abastecimento problemático da água. Na época ainda se construiu uma “arca de água”, dentro da cerca do mosteiro, solução que, no entanto, se revelou insuficiente.

Uma coisa era certa, as clarissas não poderiam depender eterna-mente dos cântaros trazidos diariamente pelos serviçais.É aqui que começa a delinear-se a história do aqueduto.É também cedo que as clarissas se apercebem dos fios de ouro que iriam correr no aqueduto:“ Depressa se aperceberam as freiras da impossibilidade de entreter nos claustros aquele fio de água a correr, sem outro fio de ouro constantemente a correr também para fora do convento.” Vários autores atribuem o projeto arquitetónico primitivo ao célebre engenheiro italiano Filip Térzi. Esta ideia deve-se ao que Frei Francisco de S. Luís, em 1839 escreveu sobre Térzio, na sua Lista de alguns artistas portugueses:… “delineou o forte de cinco baluartes que defende a barra do Ave em Vila do Conde. Fez o grande Aqueduto que traz água ao convento das religiosas da mesma vila”. Verdade é que em 1626, a aba-dessa D. Maria de Meneses, comprou terrenos e contratou mestres pedreiros para a construção de um aqueduto que trouxesse água de uma nascente existente em Terroso, na Póvoa de Varzim, para abastecer o convento, dando início assim, à empreitada.Em 1636, aquando do abadessado de D. Catarina Lima as obras foram interrompidas pela descoberta de um grave desnivelamento. Este foi um dos muitos problemas nos avanços e recuos que o aqueduto iria enfrentar.

É a partir desta data que começam a surgir no Livro de Receitas e Despesas, importâncias ligadas a: compra de fontes, ida de caminheiros a Vila Viçosa e também a arquitetos mandados vir pelo Duque de Bragança para examinar e dirigir as obras. Muitos proprietários desagrada-dos ao verem as suas terras corta-das a meio, causaram compreensíveis problemas e exigiram grandes indemnizações. Ao longo dos anos, por diversas vezes, desviaram a água e apoderaram-se das pias para uso próprio. Apesar da Congregação dos Ritos confirmar em outubro de 1739 que segundo o Papa, seriam excomungados todos aqueles que roubassem água, o ato foi contínuo, assim como o roubo de pedras. Nem mesmo a contratação de guardas garantiu o seu funcionamento. Compreende-se, assim, os múltiplos percalços na obra já de si complexa.Após a questão do desnivelamento resolvida, os trabalhos reiniciaram apenas em 1705 já com a Abadessa D. Bárbara Micaela de Ataíde. As obras foram entregues ao Capitão Domingos Lopes, do Porto e o Tenente-General de Artilharia de Villa Lobos. A Abadessa juntamente com as suas irmãs, D. Maria Ângela e D. Maria António e ainda, com a ajuda do seu irmão D. Manuel de Azevedo de Ataíde, Governador de Armas da Província do Minho, conseguiram que o rei consentisse na nomeação de um Juíz privativo e de isenção militar, para os homens que trabalhassem na construção do aqueduto. A obra é então entregue a João Rodrigues, de Ponte de Lima, que acaba por falir. Segue-se o facto da obra ser dada por 4400$00 a Domingos Moreira, de Moreira da Maia, 5 este ligado a importantes obras religiosas do Norte do país.Segundo José de Azevedo 6 mui-tos foram os empreiteiros e pedreiros associados a esta obra, como os vindos de Beiriz, de Laúndos e de Terroso, terras onde se encontrariam muitos e bons artistas destas artes.A bendita água chega finalmente ao chafariz do claustro do Convento no dia 20 de outubro de 1714, data, por isso, memorável.

A somar aos inúmeros contra-tempos, em 1794, um furacão prejudicou seriamente o aqueduto ao deitar por terra 46 arcos, no lugar de Casal do Monte.À época da extinção das ordens religiosas, o aqueduto começa a sofrer a ruína progressiva. 7 Em 1834 um Decreto assinado pelo Ministro Liberal Joaquim António de Aguiar expulsava os frades dos seus conventos e reconhecia às freiras o direito de “se acabarem” em paz nas suas celas. Aos poucos, e na hora da morte, as freiras clarissas foram desaparecendo levando consigo a vivacidade e a preciosa água.Com o abandono, as pias do aqueduto também desapareceram, pois os agricultores usavam-nas para dar de comer aos porcos e às galinhas, com as chamadas “gamelas”, “gamelões” ou “pias”. Em alguns locais é possível, ainda, ver restos dos antigos tubos de grés abandonados.Tantas são as histórias que continuam associadas ao Aqueduto e uma das mais curiosas, é o ter sido entendido, noutros tempos, como uma barreira entre o bem e o mal.

O povo é mesmo assim, dá nomes às coisas e aos lugares, quando se sente rodeado por uma força inexplicável. É a imponência, é a beleza quando as cores do entardecer por detrás dos arcos nos ofuscam, ou é o bater das asas das pombas que não abandonam aquela barreira intemporal do aqueduto.Caminhar ao longo do aqueduto é passar por Quintela (lugar mais antigo de Argivai) e ver as cruzes da Via Sacra, a Casa da Ramada, é calcorrear a carraria mourisca, é passar pela loja do Tio Adelino, é enquadrar a Capela da Nossa Senhora do Bom Sucesso num dos arcos como se de uma moldura se tratasse, é lembrar o Ti Fernando, o Ti Abel, é entrar por Calves e pensar nos penedos dos guizos que serviram de pedra para o próprio aqueduto.Agora, já não há clarissas, a água já não corre pelas pias, já não há fios de ouro no monumento, mas o aqueduto é um tudo de todos, e assim permanecerá enquanto o Homem quiser.

Sofia Teixeira