Programa “mais Habitação” – Será Mesmo Um Melão Por Abrir?

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Este é o tema de abertura de quase todos os telejornais bem como da imprensa escrita, e já não se falava tanto sobre a habitação – que eu me recorde – desde o programa de irradicação das barracas nas áreas metropolitanas de Lisboa e Porto, nos anos 90.

Após décadas em que quer o Estado, quer as Autarquias estiveram pouco ativas em matéria de habitação, eis que o Governo nos apresenta o “Mais Habitação”: um programa que tem como principal desígnio o aumento da oferta de imóveis para habitação, a custos que as famílias portuguesas consigam suportar.

Um documento que segundo Marcelo Rebelo de Sousa é como um melão “só se sabe se é bom depois de o abrir”. Na minha ótica, a metodologia não foi a melhor, primeiro por não ter tido o envolvimento dos Municípios e segundo pelo tempo que foi dado para discutir o diploma (já para não falar na eventual inconstitucionalidade de algumas normas).

Antes de me debruçar sobre as propostas, não posso deixar de concordar com o Presidente da República: 7 dias para discutir um assunto de tamanha importância e que o Governo veio agora corrigir é “uma coisa do outro mundo”. Mais difícil de compreender é o compromisso do Governo em dar resposta a todas as participações, pasme-se, em dois dias! Temo que a resposta seja um proforma…

Um processo que se queria participado, onde as autarquias deveriam ter tido um papel ativo na elaboração das propostas (são elas que estão próximas das populações e dos seus problemas), onde deveriam ter sido envolvidos todos os players do mercado imobiliário, públicos e privados através das associações representativas do setor. Mas ao invés do diálogo, foi apresentado um pomposo powerpoint, demoraram semanas a apresentar os documentos legislativos e transforaram a participação pública, numa participação aparente. Ou alguém acredita que em dois dias vão acomodar propostas em texto legislativo? Num setor em que pelo prazo e dimensão do investimento a confiança é o valor fundamental, o processo não parece ter dado um grande contributo.

Um País que até ao ano passado tinha apenas 2% de habitação pública não pode deixar de incluir o setor privado na busca de soluções para este problema, até porque o Estado já demonstrou por diversas vezes que tem sérias dificuldades na gestão do território.

O pacote “Mais Habitação” divide-se em 5 eixos principais: 1.º aumentar a oferta de imóveis para habitação; 2.º simplificar processos de licenciamento; 3.º aumentar casas no mercado de arrendamento; 4.º combater especulação; 5.º proteger famílias.

Cada um destes eixos é por sua vez composto por várias medidas, sendo certo que me irei debruçar naquelas que entendo serem mais importantes ou de maior dificuldade em implementar.

A primeira e talvez a mais positiva é a simplificação do processo de licenciamento. Em média, um investidor aguarda anos por um licenciamento, seja pela burocratização do processo, pela falta de interpretação uniforme pelas autarquias das normas em vigor, pela falta de capacidade de resposta em tempo útil das autarquias – muito por falta de meios humanos – mas fundamentalmente pela complexidade do quadro legal. Para que os leitores tenham noção da complexidade, o Governo acabou de lançar uma plataforma (SILUC) onde reúne mais de 2200 diplomas legais sobre matérias de urbanismo e construção. Sim, leram bem! Não obstante já estar previsto anteriormente a aprovação com base nos termos de responsabilidade, vamos rezar para que os projetistas tenham tamanha capacidade para saber gerir mais de 2000 leis sobre estas matérias, sobretudo tendo em conta o regime sancionatório que aí vem. Desejo a melhor das sortes aos Srs. Arquitetos!

Uma das medidas que mais me tem despertado a curiosidade é a forma como o Estado vai arrendar para subarrendar, sobretudo quando o Estado pensa em passar essa responsabilidade para o IHRU I.P. e para a ESTAMO. Ora, no que diz respeito ao Instituto da Habitação e da Reabilitação Urbana, este tem enormes dificuldades em gerir o património que tem, não conseguindo identificar onde está e em que estado se encontra. Se tem dificuldades graves com o atual património, como ficará com mais património ainda? Sobre este mesmo IHRU, Luísa Salgueiro defendeu que os programas de habitação “seriam seguramente melhor sucedidas” se as câmaras tiverem um papel decisório mais relevante ao invés de continuarem dependentes deste instituto. Eu iria mais longe: os Municípios não podem depender de um Instituto que não tem capacidade de resposta (como, infelizmente, tem demonstrado ao longo dos anos).

Sobre a ESTAMO, que “terá como principal tarefa promover a identificação no mercado dos imóveis que cumpram os requisitos”, importa referir que esta mesma Sociedade detida pela PARPÚBLICA, é a mesma que entre 2017 e 2021 vendeu património do Estado no valor total de 143.440.978,00€, e que desse património, em 2018 por exemplo 96% desse património foi vendido a privados, 85% em 2019, e 99% em 2021 (não existem números públicos em 2020 e 2022), e que por exemplo no final do ano de 2021, foi vendido o Antigo Hospital do Desterro na Avenida Almirante Reis à Mainside Investments pelo valor de 10,5 milhões de euros para ser convertido num Hotel !! Deixo três perguntas aos leitores: com tanta falta de residência universitária em Lisboa, quantos quartos teriam sido possíveis criar neste mesmo edifício do Estado? Que sentido faz suspender licenças de AL para turistas e ao mesmo tempo o Estado vende os seus bens imóveis para a construção de hotéis? Quantas casas teriam sido possíveis construir com estes quase 143,5 milhões de euros de receitas da ESTAMO?

O Estado deve inventariar, reabilitar e arrendar os seus imóveis, ao invés de optar pela venda, como aconteceu ainda recentemente com o Quartel de São Brás no Porto!

Entrando no AL, não posso deixar de elogiar a coragem do Secretário de Estado do Turismo, bem como do Presidente do Turismo do Porto e Norte. Estiveram muito bem ao pedir calma, mas sobretudo uma profunda reflexão sobre a decisão de travão ao Alojamento Local, não só porque já existem medidas de contenção em vários municípios, mas também porque muitos destes Municípios estavam precisamente a concluir novos regulamentos de gestão de licenças e fiscalização. O Alojamento para Turistas teve e tem um papel fundamental na alavancagem da economia, pela criação direta de emprego, quer por toda a economia que gira à volta deste negócio (construção, limpeza, lavandarias, restauração, entre tantas outras). Quem não se recorda do abandono dos centros urbanos do Porto e de Lisboa com milhares de prédios degradados – em parte originado pelo congelamento das rendas – ou antes da revolução na reabilitação urbana provocada pelo aumento do turismo? Quem não se recorda da folha A4 nas janelas das casas nas Praias da Póvoa de Varzim, Vila do Conde, Figueira da Foz, Nazaré entre outros concelhos onde podíamos ler “Aluga-se quarto”, onde não havia qualquer quadro legal, onde a grande maioria não declarava qualquer rendimento às Finanças. É esse paradigma de AL que queremos voltar? As regras e limites ao AL devem existir e estavam a ser (bem) elaboradas pelos municípios, no entanto, não podemos cair na esparrela que o AL seja um “bode expiatório” para todos os problemas da habitação.

Outra medida que temo não passar das boas intenções é a obrigação dos Bancos em disponibilizar uma Taxa Fixa no crédito a habitação, tentando passar uma ideia a um comprador menos informado que esta é uma boa medida e que o mesmo deve ir a correr trocar a sua taxa variável por uma taxa fixa. Primeiro, a grande maioria dos bancos sempre tiveram abertos a essa possibilidade, sobretudo quando os juros estavam negativos, e, em segundo lugar porque um comprador informado fixo a prestação quando as taxas variáveis estão muito baixas e não o contrário!

Para falar de um pacote de habitação é preciso perceber porque se constrói hoje menos 80% do que na década de 90. Porque é que o País tem mais casas que agregados familiares, mas ainda assim falta habitação? Porque é que existem milhares de casas devolutas? Num momento em que a palavra Confiança deveria ser a mais utilizada no discurso político, o Estado não deve anunciar aos proprietários que vai impor arrendamento coercivo de casas devolutas, sem antes ter efetuado uma inventariação e potencialização do seu próprio património. Ao fazer os anúncios da forma e procedimento que o fez, o Estado assusta investidores e fazendo suspender vários projetos que estavam em carteira. Pior ainda, verificou-se uma avalanche de proprietários a comunicar aos arrendatários que os seus contratos não iam ser renovados, antes que este pacote seja aprovado.

É muito importante centrar o debate num princípio de confiança recíproca, procurando um pacto de regime que promova a estabilidade fiscal e legislativa. Pensar num espaço temporal de cerca de 20 anos, evitando que a alternância governativa promova uma revolução nas áreas acima referidas.

Sei que o texto já vai longo, mas mais do que criticar, importa também apresentar alternativas sólidas que permitam ajudar a resolver os problemas da habitação. Fruto da minha experiência profissional, estas são algumas das medidas que acredito poderem criar condições ao aumento da oferta da habitação:
• Baixar o IVA para 6% para o setor da construção desde que seja para fins habitacionais;
• Aumentar o valor da isenção do IMT para a compra de habitação própria permanente, podendo inclusive variar de concelho para concelho, tendo em conta que uma casa em Lisboa ou no Porto não custa o mesmo que na Guarda ou em Bragança;
• Redução do Imposto de Selo na compra de habitação própria permanente;
• Reforçar o limite máximo das deduções do valor das rendas em sede de IRS;
• Apesar de perceber a intenção inicial do legislador ao eliminar nos novos PDM’s a figura dos solos urbanizáveis, este acabou por ter um efeito perverso nos solos urbanos, isto é, havendo menos oferta deste tipo de solos. O preço dos mesmos acabou por aumentar, tendo hoje um peso muito superior num projeto imobiliário, o que tem também levado ao aumento do preço das casas – necessária revisão desta norma;
• Criação de um Fundo de Garantia de Arrendamento, à semelhança do que já acontece com por exemplo o Fundo de Garantia Salarial, podendo funcionar como garantia e compensação por falta de cumprimento dos inquilinos;
• Aumento do já previsto agravamento do IMI sobre imóveis devolutos, mas apenas e só em Zonas de Pressão Urbanística;
• Transferência de bens imóveis do Estado para as Autarquias, tendo em conta que estas terão não só maior facilidade em reabilitar, como terão maior capacidade de gestão dos mesmos;
• Repensar o impacto dos “nómadas digitais” que têm salários pagos na Alemanha, Inglaterra, Estados Unidos, e que acabam por ser uma concorrência desleal para com os portugueses?

Finalmente não posso deixar de felicitar medidas como os benefícios fiscais para incentivar o arrendamento, nomeadamente na redução das taxas. No entanto será justo que um proprietário veja reduzir a sua taxa de IRS no que diz respeito a rendimentos prediais, e um outro qualquer cidadão que não tenha rendimentos prediais continue a ter taxas de IRS sobre o seu trabalho, muito superiores aos rendimentos prediais e superior à maioria dos países da União Europeia?

Aumentar o rendimento das pessoas através da redução de impostos não seria uma medida importante, não só para combater o problema da inflação, bem como para dar mais condições para que as pessoas consigam pagar uma renda?

Façamos um simples exercício:
Como pode um casal com 30 anos pagar um empréstimo de mais de 800 euros para uma casa de 205.000€ por exemplo, quando de um salário de 3.000€ brutos de um casal, o Estado fica com 39,65% dos seus rendimentos?

Como pode o Estado pensar que o problema apenas se resolve com estas medidas quando o Estado Central e as Autarquias arrecadam com receitas diretas e indiretas na compra desta mesma casa de 205.000€ cerca de 15% do seu custo final, receitas essas provenientes do IMT e IS na compra do terreno, do IVA na construção, do IMT e do IS no dia da escritura, do IS novamente na contração do empréstimo bancário, e isto sem falar nas mais-valias da venda do terreno e da venda de cada fração?

Uma casa de 205.000€ para habitação própria permanente no dia da escritura custa a este casal jovem 214.631€, e desse valor total, este mesmo casal tem de ter obrigatoriamente 39.633,00€ de capitais próprios tendo em conta que a Banca apenas lhes empresta 175.000€, o que representa 18,47% do valor global da compra. O Estado através de impostos diretos e indiretos, arrecadou por sua vez nesta mesma venda cerca de 32.000€. Nesta operação, o Estado arrecadou praticamente o mesmo valor de receita (15%) que um Investidor esperaria receber de lucro com este negócio…

Será que o problema da habitação se vai resolver apenas com este pacote “Mais Habitação”, ou será que só vamos mesmo saber depois de provar uma fatia do melão?

Opinião Ivo Maio – ‘O Contador de Areia’